26 out A paridade de armas manda lembranças
Ricardo Pieri
Conversas ao pé do ouvido do magistrado em audiência. Abertura de vista para considerações sobre pedido de diligência feito pela parte contrária. Possibilidade de retirar de cartório autos de medidas cautelares sigilosas para análise no conforto de seu local de trabalho. Quem já se deparou com a Defesa tomando parte nestes episódios, corriqueiros no dia-a-dia da Justiça Criminal? Passados mais de vinte anos desde 1988, pequenos detalhes como estes permitem entrever que a paridade de armas, conquanto almejada pela legislação vigente, ainda não é uma realidade efetiva no processo penal brasileiro.
A reforçar esta impressão, tem se tornado cada vez mais frequente, no procedimento comum, após o advento da Lei no 11.719/2008, dar a palavra ao Ministério Público para rebater os argumentos expendidos pelo réu em sua resposta à acusação (artigo 396-A do CPP), antes da decisão de rejeição, ou não, da denúncia.
O avanço desta prática, no entanto, merece ser contido, antes que sua difusão lhe dê ares de normalidade.
Pela dinâmica do contraditório, no processo penal, a Defesa goza da prerrogativa de falar após a Acusação. Não se trata de nenhum favor ou privilégio, mas sim de medida indispensável para assegurar o equilíbrio de forças, de modo a evitar que uma das partes possua mais espaço para influenciar a convicção do magistrado do que a outra, como ocorreria caso o Parquetpudesse alegar algo em prejuízo do réu, sem que a este, em contrapartida, fosse franqueado o direito de revidar na mesma medida.
Em princípio, a cada uma das partes se confere apenas uma oportunidade para se pronunciar em determinada quadra do processo penal, evitando-se, assim, que o debate em torno de um tema se eternize, com sucessivas aberturas de vista a cada uma delas para redarguir o que a outra disse, em evidente prejuízo da boa marcha do procedimento rumo ao provimento de mérito.
No limiar da ação penal, previamente à emissão do juízo de admissibilidade da acusação pelo juiz, cabe ao Ministério Público a primeira manifestação, formalizada na denúncia. Neste ensejo inicial, a tese acusatória é exposta. As cartas são colocadas na mesa. Todo o acervo probatório empregado para articular a imputação deve estar ao alcance do réu. Se desejava oParquetdizer algo mais, mas não o fez, lhe restará apenas o silêncio, enquanto não se inicia o ciclo instrutório.
É dentro deste contexto que a Defesa, nesta fase preambular do procedimento comum, estrutura a sua resposta à acusação. Diante dos termos da denúncia, e conhecendo os dados que lhe serviram de base, o defensor alcança o raciocínio subjacente à opinio ministerial. E a partir daí, em contraponto, desenvolve a sua própria estratégia, revelando-a na resposta.
A balança, em tais condições, talvez até se incline mais para o lado do Ministério Público, que pode direcionar a gosto o ponteiro da investigação na primeira fase da persecutio, em ambiente inquisitorial, até a chegada do dia em que resolve se expressar por meio da exordial; já a Defesa, se não pode intervir na produção da matéria-prima da imputação, é municiada com amplo acesso ao seu teor para que possa reagir e externar, na resposta, os motivos e os meios pelos quais comprovará a inocência de seu constituinte.
Ora, sendo justo o embate neste cenário (senão menos favorável à Defesa), por que inovar com mais um flanco de ataque em prol do órgão acusador?
Desde o ato de oferecimento da denúncia a ameaça de perda da liberdade se desnuda a olhos vistos. O risco de condenação se avizinha concretamente. Por isso, mesmo que ainda no berço da ação penal, a participação da Defesa não pode jamais ser nivelada em patamar inferior ao do Ministério Público.
Pouco importa que o acusado, em sua resposta, traga um documento ou informação até então desconhecido, em abono da sua inocência. Isto também não legitima a abertura de vista à Acusação para argumentação complementar. Se o Ministério Público, na fase de inquérito, “livre” do contraditório, mesmo tendo à mão um aparato de invasão da privacidade orwelliano, não foi capaz de alcançar este documento ou informação, não será porque a parte mais fraca apresentou-o nos autos que faria brotar do nada a cômoda graça de nova vista, a latere do devido processo legal, jogando ao lixo o plano desenvolvido pela Defesa para debelar a ação penal em sua origem. O que não impede, por óbvio, em uma etapa seguinte, que o órgão acusador, incorformado com eventual revés, diga o que pensa da questão por meio da competente iniciativa recursal, amparada, aí sim, pelo modelo procedimental de regência.
Note-se: da mesma maneira que o Estado guarda algumas supresas desagradáveis para investir contra o réu, a exemplo das denominadas ações controladas, dos flagrantes diferidos e das demais medidas cautelares não ostensivas, que se aproveitam do alheamento para causar gravames de toda sorte, é natural que ele, o acusado, também possa tirar vantagem do desconhecimento de seu adversário acerca de uma certa informação para, na ocasião que melhor lhe aprouver, tentar desmoralizá-lo. As regras do jogo devem comportar doses de malícia para ambas as partes, desde que, sem descambar para a deslealdade, permaneçam sob as balizas da ética.
Por mais forte razão, não há sentido no convite ao Parquet para que hostilize a resposta do réu quando nesta é esgrimida questão de direito. Iura novit curia. O julgador não precisa da ajuda do órgão acusador para encontrar a solução jurídica adequada ao caso. Se a questão de direito foi levantada pela Defesa em sua resposta, o agente ministerial, tão capacitado quanto, também poderia tê-la abordado ao ofertar a denúncia. Se não o fez, deliberadamente ou por esquecimento, somente poderá discuti-la, querendo, mais à frente, por meio da interposição do recurso que lhe é assegurado para reverter a decisão de rejeição da exordial.
Aliás, antes do advento do artigo 396-A do CPP, muito provavelmente nunca ocorreu de um magistrado solicitar a opinião da Defesa Técnica, previamente ao recebimento da denúncia no procedimento comum, para solucionar eventual dúvida resultante de um ponto controvertido posto pela Acusação ao deflagrar a ação penal. Por que será que agora, estabelecida como regra a resposta defensiva preliminar, o Ministério Público tem sido instado a opinar a seu respeito? Estamos, de fato, hoje, a percorrer uma estrada de mão dupla?
Aqui, no processo penal, não existem formas inúteis. “A exigência de fiel observância, por parte do Estado, das formas processuais estabelecidas em lei, notadamente quando instituídas em favor do acusado, representa, no âmbito das persecuções penais, inestimável garantia de liberdade, pois o processo penal configura expressivo instrumento constitucional de salvaguarda dos direitos e garantias assegurados ao réu.”[1]
O pronunciamento ministerial posterior à resposta do artigo 396-A do CPP, antes do recebimento da denúncia, é estranho ao tipo procedimental comum. Esta prática desestabiliza por completo a dinâmica do contraditório na fase preliminar de admissibilidade da acusação, em franco prejuízo à proposta de estratégia da qual lançou mão o réu para ver a exordial rejeitada.
É tempo de dar concretude a um processo penal democrático, no qual as partes efetivamente são tratadas com a mesma dignidade perante a Magistratura, extirpando-se pequenos detalhes como este que ora se discute.
A paridade de armas manda lembranças.
[1]STF, HC no 90.226/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 18.12.2007, unânime.