Considerações em abono do reconhecimento antecipado da prescrição retroativa

Publicado no Boletim número 119 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Outubro de 2002.


Ricardo Pieri

Considerações em abono do reconhecimento antecipado da prescrição retroativa

Como não se desconhece, o instituto da prescrição retroativa (art. 110, §§ 1º e 2°, CP) leva em conta, alternativamente, dois interregnos distintos, situados entre a data da consumação do fato supostamente delituoso e a data do recebimento da denúncia, ou então entre a data da prática deste ato processual e a do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação, regulando-se, notadamente, pela pena em concreto, tendo o condão de elidir a pretensão punitiva.[1]

Alguns doutos, no entanto, ainda na primeira fase da persecutio criminnis ou no curso do processo, sustentam a possibilidade de imaginar-se qual seria a pena aplicada caso o suposto agente viesse a ser efetivamente condenado, postulando, então, com base neste cálculo abstrato, o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa (a vulgarmente denominada prescrição pela pena ideal), no desiderato de evitar a deflagração da ação penal ou de trancá-la, eis que, de qualquer forma, transitado em julgado para a acusação o decisum eventualmente condenatório, forçoso seria reconhecer a extinção da punibilidade em função da incidência daquele instituto.

Esta tese de há muito vem sendo repelida pelas Cortes pátrias, pois, como se afirma: a) não seria lícito idealizar antes ou no curso do processo a pena que eventualmente viria a ser aplicada na sentença (STF, RHC nº 66.913/DF, Rel. Min. Sidnei Sanches, DJ 18.11.88); b) o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa não encontra pouso no direito positivo vigente (STJ, RHC nº 11.986/PR, Rel. Min. Vicente Leal, DJ 11.03.02) e c) o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa violaria a garantia do devido processo legal, pois os efeitos da sentença condenatória, como a formação de título executivo e do antecedente penal, seriam impostos ao acusado sem que ocorresse sua efetiva condenação (STJ, RHC nº 2.926, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, in RSTJ 68/97).

Conquanto respeitáveis, tais assertivas não nos parecem corretas.

No tocante à impossibilidade de aferir-se, antes da deflagração da ação penal, ou no curso desta, a futura necessidade de aplicação da pena e hipoteticamente calcular seu quantum, temos o descompasso deste argumento com a regra de hermenêutica que impõe ao exegeta a adoção de uma visão panorâmica diante do ordenamento jurídico, máxime em matéria penal.

Com efeito, a possibilidade de antever-se a necessidade de aplicação de uma pena não é em nada estranha ao direito positivo vigente, vislumbrando-se-a inequivocamente no instituto da transação penal, onde o Ministério Público, ao fazer a respectiva proposta, como bem anota Mirabete, emite um juízo de probabilidade de culpabilidade, numa ante­visão da necessidade de aplicação da pena com os elementos que lhe são apresentados no momento.[2]

Destarte, se esta idéia de antevisão da necessidade de aplicação da pena tem assento em lei federal vigente, impende estendê-la, in bonan partem, para fins de reconhecimento antecipado da prescrição retroativa, naqueles casos em que seja possível identificar, seguramente, logo de início, a ampla benevolência das circunstâncias judiciais alinhadas no art. 59 do Código Penal.

É certo que no instituto da transação penal não se afere o quantum penal a ser aplicado como ocorre no procedimento sumário ou ordinário, mas, de outro prisma, é igualmente exato que uma série de requisitos têm de ser preenchidos para que a correlata proposta seja ofertada, tais como os antecedentes do autor do fato, sua conduta social, sua personalidade bem como os motivos e circunstâncias do crime em tese (art. 76, § 2° da Lei nº 9.099/95), todos idênticos àqueles elencados no art. 59 do Estatuto Repressor.

Ora, se tais requisitos podem ser aferidos preliminarmente para fins de transação penal, por que também não poderiam ser verificados antes do oferecimento da denúncia, ou no curso do processo, quando possível fazê-lo com segurança, à vista das particularidades do caso concreto, para efeito de idealização da pena que eventualmente seria aplicada quando da emissão do provimento jurisdicional de mérito? Inexiste motivo plausível para não fazê-lo, já que ubi eadem ratio, ibi idem ius.

Melhor sorte não merece a assertiva de que o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa não pode ser acolhido à míngua de previsão legal em seu abono.

Isto porque, dentro do atual contexto de evolução da ciência jurídica, identifica-se um nítido esgotamento do clássico modelo positivista, com o início de uma fase onde desponta a normatização de postulados. Nesta incipiente era, os operadores do Direito extraem princípios do ordenamento jurídico enquanto todo harmônico, imputando-lhes densidade normativa, a fim de aplicá-los no deslinde de questões desprovidas de uma solução justa diante da legislação em vigor.

Pontifica, neste quadro, o princípio da razoabilidade, que, de acordo com Luis Roberto Barroso, encerra um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a Justiça. (…) É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum; aos valores vigentes em dado momento ou lugar.[3] O princípio da razoabilidade, deveras, emana da própria Lei Maior, revelando a faceta substancial da garantia do devido processo legal, conforme vem reconhecendo a mais autorizada doutrina e jurisprudência.[4]

Segundo Barroso, três são os requisitos para verificar se o ato questionado guarda, ou não, sintonia com o princípio da razoabilidade, a saber: a) a existência de uma relação proporcional e racional entre seus motivos, meios e fins; b) se o ato está sendo praticado da forma menos onerosa possível para o cidadão e c) a ponderação entre os danos causados pela medida e os resultados a serem obtidos.[5]

Transportando estas lições para a análise do tema em pauta, indaga-se: a) haveria uma relação de racionalidade entre o motivo da propositura da ação penal o cotejo da legitimidade da atuação da vontade concreta da lei pretendida pela acusação, seu meio o processo, com todo o dispêndio de tempo e energia inerente ao seu procedimento e seu eventual fim a prolação de uma sentença cujo comando, sendo condenatório, não se revestiria de efetividade para promover a atuação daquela mesma vontade concreta da lei, em razão da reforma que sofreria pela declaração da extinção da punibilidade?; b) seria o seu eventual resultado a emissão de um provimento eventualmente condenatório inepto para a realização do direito material apontado na denúncia, proporcional ao dano que causaria, vale dizer, a gravíssima afronta ao status dignitatis do acusado?[6]

À evidência, a resposta a tais perguntas é negativa, concluindo-se não ser razoável, quando possível antever seguramente o patamar da sanção, a propositura da ação penal para que ao final, preclusa a faculdade recursal da acusação ou desprovido seu recurso, se constate que o direito de punir foi fulminado pelo decurso do tempo. Tal exegese, de fato, resulta da interpretação conforme a Constituição, no que diz com a garantia do devido processo legal em seu reflexo substantivo.

No entanto, o argumento infenso à tese sub examen merecedor da mais acerba crítica reside na violação desta magna garantia, vez que como se sustenta o reconhecimento da prescrição retroativa demandaria a condenação do acusado, a quem não poderiam ser impostos os efeitos daí resultantes sem o trâmite da ação penal, como, v.g., a configuração de antecedente criminal e do título executivo.

Isto porque, reconhecida a prescrição retroativa, o comando da sentença que a priori resolveu o mérito, aplicando a pena, vem a ser reformado antes de se tornar imutável, atestando a inexistência do direito concreto de punir. Ora, se a decisão foi modificada antes de alcançar a autoridade de coisa julgada, não há como se cogitar da produção de seus efeitos originários. O inconteste dever de indenizar resultante da ampliação ope legis dos limites objetivos da coisa julgada (art. 91, CP) não chega a ser confirmado, porquanto a condenação do qual emana vem a ser substituída pela decisão que declara extinta a punibilidade. Aliás, o CPP é expresso ao determinar, em seu art. 63, que a execução na instância cível somente pode ser levada a cabo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, e esta alteração de estado jamais chega a ocorrer ante o reconhecimento da prescrição retroativa.

De fato, é absurda, data maxima venia, a possibilidade de deflagração da ação civil ex delicto fulcrada em dispositivo de sentença reformado para rechaçar a condenação inicialmente imposta. Este comando, quando muito, poderia apenas servir de suporte documental – substancioso, é certo – para a propositura da ação de conhecimento indenizatória, na qual seria de se cogitar, quiçá, do julgamento antecipado da lide, nos termos do art. 330, II, in fine do CPC. Por outro lado, tanto antes como depois da condenação, pouco importa, o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva enseja apenas a consignação da extinção da punibilidade na FAC do acusado, não sendo este, todavia, o momento próprio para se discutir se este registro configura ou não antecedente penal.

Assim sendo, não vinga o argumento de que a tese em defesa afronta a garantia do devido processo legal, pelo simples fato de que a prescrição retroativa, mesmo quando reconhecida após a preclusão da faculdade recursal da acusação ou o desprovimento de seu recurso, afasta a condenação inicial­mente imposta ao réu. Logo, se reconhecida antecipadamente, não haverá condenação sem processo, pois a condenação, de toda sorte, jamais chega a se consumar. Verifica-se, tão-somente, a constatação preliminar da ocorrência da extinção da punibilidade, ato que dispensa a formação da relação processual e que, por demais óbvio, não traz nenhum prejuízo para o suposto agente.

Prejuízo real ocorre quando, de antemão, diante da ampla e inequívoca benevolência das circunstâncias judiciais, constata-se que a prescrição retroativa decerto irá ocorrer no momento da eventual condenação, e, mesmo assim, deflagra-se a ação penal no desiderato exclusivo de cumprir a formalidade que beira o capricho da prolação da sentença de mérito, para em seguida reconhecer-se a materialização do fenômeno. Com o devido respeito, nada mais desproporcional e ilógico.

Em verdade, o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa visa justamente a homenagear a magna garantia do devido processo legal, notadamente em seu prisma substancial (substantive due process) que, como visto, descansa no princípio da razoabilidade.

Um dos aspectos já cotejados deste postulado consiste na adequação entre os motivos, meios e fins de uma certa medida promovida pela Administração Pública lato sensu. Afere-se, neste passo, a aptidão ou efetividade que uma medida possui para atingir o fim a que se propõe. Outrossim, na presente tese, cuida-se de apreciar a efetividade do processo, expressão que, na lição de Dinamarco, resume a idéia de que o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda sua plenitude seus escopos institucionais, de forma a proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter.[7]Kazuo Watanabe, por sua vez, vê no ideal da efetividade do processo a busca pela maior aproximação, ou mesmo de um acoplamento mais perfeito, entre o direito material e o direito processual.[8]

Destarte, seria possível afirmar que o processo teria préstimo para atingir seu fim, como instrumento de atuação do direito material, quando possível an­te­ver, com segurança, nos moldes propostos, que a prescrição retroativa certamente estaria configurada no momento da resolução do mérito? Teria o processo aptidão, em casos tais, para promover a (eventualmente necessária) realização do direito da sociedade de fazer incidir o peso da ultima ratio sobre aquele que praticou uma conduta tipificada na legislação penal? Em uma palavra, revestir-se-ia o processo de efetividade para atingir seu fim?

Salta aos olhos a negativa. Desprovida de sua função instrumental, eis que, de qualquer forma, quando da emissão do provimento de mérito, extinta estaria a punibilidade, a instauração da relação processual penal, além de extremamente gravosa, afigura-se medida absolutamente desproporcional e inútil, refletindo a plena inadequação da via eleita para a obtenção do provimento jurisdicional postulado na peça vestibular, vale dizer, a condenação genérica. E, sendo inútil e inadequado para a realização do direito cuja existência é sustentada pela acusação, resta obstaculizado o exercício do direito de ação, porquanto ausente o requisito do interesse de agir, impondo-se, por tal arte, a extinção do processo sem resolução do mérito, inclusive pela via heróica.

Por tudo isto, quando possível antever de maneira segura os efeitos benfazejos das circunstâncias judiciais, à luz das particularidades do caso concreto,entendemos que o art. 110, §§ 1º e 2º do Código Penal há de ser interpretado de forma a permitir-se o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa, pois somente assim sua aplicação ultrapassará incólume o filtro estampado na Constituição da República, legitimando, pois, a atuação da vontade concreta da Lei Penal Substantiva.

[1]Descabe cogitar, a despeito da redação do citado dispositivo de lei, de trânsito em julgado estanque para a acusação, pois esta alteração de estado, uma vez materializada, impõe-se para ambas as partes. O fato de somente a defesa ainda poder interpor um certo recurso sinaliza, de outra parte, que ocorreu a preclusão da faculdade recursal da acusação. O trânsito em julgado consubstancia fenômeno tocante apenas ao dispositivo da sentença, não primando pela boa técnica sua análise em relação às partes.

[2]Juizados Especiais Criminais, Atlas, 4ª edição, pág. 120.

[3] Interpretação e Aplicação da Constituição, Saraiva, 3ª edição, p. 215.

[4] Nesse sentido, Grandinetti, Luiz Carlos, O Processo Penal em face da Constituição, Forense, 2ª edição, p. 70 e STF, HC 71408/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.8.99.

[5] Obra citada, p. 217/219.

[6] O requisito da prática do ato pela forma menos onerosa possível para o cidadão não pode ser considerado, visto que a simples instauração da relação processual penal, por si só, já causa substancial gravame moral para o indivíduo.

[7]A Instrumentalidade do Processo, Malheiros, 10ª edição, pág. 330, mencionando a conhecida lição de Chiovenda.

[8] Da Cognição no Processo Civil, Bookseller, 2ª edição, p. 21.

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