Interpretando o art. 15 da Lei 9964/2000

Publicado no Boletim número 125 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Abril de 2003.

Ricardo Pieri

Interpretando o art. 15 da Lei 9964/2000

Publicado no Boletim número 125 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Abril de 2003

I – Contornos da questão

Em uma das suas últimas manifestações no campo do Direito Penal Econômico, veiculada pelo art. 15 da Lei nº 9.964/2000, o legislador outorgou à celebração do ajuste de parcelamento do débito tributário anterior ao recebimento da denúncia, por meio da adesão ao programa de recuperação fiscal (Refis), o condão de suspender a pretensão punitiva estatal, determinando, ainda, a extinção da punibilidade ante o cabal cumprimento dos termos do acordo.

O alcance dessa norma penal, de parcial conteúdo material, notadamente benéfica ao agente[1], cingiu-se aos injustos envolvendo créditos tributários titularizados pela União alvo do diploma legal, restando, sua aplicação aos delitos envolvendo créditos tributários estaduais, municipais e do Distrito Federal, condicionada a interpositio legislatoris dos respectivos entes federativos criando seus próprios programas de recuperação fiscal, nos termos do § 2°, I, do referido dispositivo de lei.

Questionar a legitimidade desse anômalo condicionamento encerra o objetivo deste breve artigo.

O ponto a ser arrostado, para tanto, repousa em aferir a possibilidade de sujeitar-se a incidência de norma penal vigente mais benéfica à ocorrência de evento futuro e incerto, tendo como parâmetro critérios casuisticamente eleitos. O art. 15 da Lei nº 9.964/2000 se amolda a esta hipótese, pois a inscrição no Refis, que viabiliza a concessão do benefício penal, depende da natureza do crédito tributário, sendo vedada quanto àqueles de natureza diversa (daí o casuísmo), a não ser que determinadas Casas Legislativas decidam elaborar um diploma legal específico. Estabelece-se, destarte, uma espécie de suspensão da suspensão, pois a viabilidade da suspensão da pretensão punitiva no âmbito dos Estados e Municípios fica suspensa enquanto não atuar a Casa Legislativa competente[2].

Tal condicionamento, no entanto, a nosso ver, ofende o Texto Magno, não podendo prevalecer diante da observância dos processos de hermenêutica.

Com efeito, parece-nos inequívoco que o legislador, sensível à caudalosa corrente jurisprudencial que vinha conferindo interpretação extensiva ao art. 34 da Lei nº 9.249/95[3], para albergar não apenas o pagamento integral do débito tributário anteriormente à denúncia, mas também a simples celebração de acordo de parcelamento[4], entendeu por bem solucionar a celeuma por meio do art. 15 da Lei nº 9.964/2000, onde adotou posição intermediária, determinando a suspensão da pretensão punitiva num primeiro momento, ante a adesão ao Refis, para somente depois, com o cabal cumprimento dos termos do ajuste, permitir o reconhecimento da extinção da punibilidade.

Esse comando seria irretocável, caso sua incidência em relação a créditos fiscais estaduais, municipais e do Distrito Federal não tivesse sido condicionada à atividade legiferante dos respectivos entes federativos. Deveria o legislador ter disciplinado a matéria ao ditar “outras providências”, desvinculando a suspensão da pretensão punitiva da adesão ao Refis, de sorte a permitir sua incidência sobre qualquer acordo de parcelamento de débitos tributários.

Assim não agindo, criou uma verdadeira aberração jurídica, pois, sendo defeso aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios inserirem dispositivos de cunho penal ou processual penal nos diplomas legais que elaboram, a instituição do Refis no âmbito destes entes federativos se apresenta como mera formalidade nada além disso para tornar efetivo, em relação aos tributos que arrecadam, o conteúdo da norma determinante da suspensão da pretensão punitiva. Ora, vigente norma penal favorável ao réu, consagrando instituto direcionado à extinção da punibilidade, sua aplicação não pode sofrer qualquer condicionamento, mormente se este reside na interpositio legislatoris de um ente de direito público que sequer possui competência para dispor sobre matéria desta natureza!

Cumpre aventar, portanto, uma maneira de reparar esse erro do legislador, notadamente pela via da atividade de interpretação.

II – Processos de interpretação aplicáveis

Nesse passo, em primeiro, é de ver-se que o exegeta jamais pode ignorar “o chamado elemento histórico, com o qual se examina o surgimento da norma e as condições históricas que o acompanharam”[5]. Atento a este elemento, decerto vislumbrará no art. 15 da Lei nº 9.964/2000, como afirmado, uma derivação direta da celeuma em torno do art. 34 da nº Lei 9.249/95, dispositivo que se aplica, indistintamente, a créditos fiscais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, rendendo ensejo ao reconhecimento da extinção da punibilidade.

Por esse motivo e observando o elemento sistemático de hermenêutica, uma vez que “por umas normas se conhece o espírito de outras”, sendo certo que cada uma delas, deste modo, “longe de perder a própria individualidade, adquire realce maior, talvez inesperado”[6], soa evidente que o legislador, ao editar o art. 15 da Lei nº 9.964/2000, minus dixit quam voluit, pois preconizou benefício limitado a uma espécie o crédito tributário da União quando, à luz do antecedente da norma, fica claro que a ratio estava em albergar o gênero, ou seja, o crédito tributário lato sensu.

Esta fenda aberta à desigualdade de tratamento, malgrado legítima no campo tributário, onde cada ente federativo possui competência legislativa privativa, assim não se apresenta nas searas penal e processual penal, já que nestas, pelo fato de apenas a União deter competência privativa para legislar (art. 22, I, da CR), impõe-se, como corolário, uma unidade normativa vertical em todas as esferas da Federação, não podendo determinado Estado ou Município ter sua própria disciplina legal nessas matérias em relação aos créditos tributários que titularizam.

Versando o art. 15 da Lei nº 9.964/2000 sobre Direito Penal e Processual Penal, há que se guardar em primeiro plano mental, com redobrado afinco, os princípios constitucionais da razoabilidade e da isonomia, que conduzem o hermeneuta ao entendimento de que o simples fato de um crédito tributário ostentar caráter municipal, estadual ou federal não encerra diferença idônea a legitimartratamento radicalmente desigual, consistente na suspensão da pretensão punitiva num caso e na submissão ao potencial anátema da condenação criminal noutro. Isto porque este aspecto afigura-se absolutamente irrelevante para a determinação da capitulação jurídica da conduta, que depende somente da verificação em concreto dos elementos descritos nas normas penais incriminadoras em matéria tributária, dentre os quais não se inclui a natureza do crédito fiscal. Presentes os respectivos elementos, o crime será sempre o mesmo, ofendendo sempre o mesmo bem jurídico, esteja a conduta relacionada com o imposto de renda, o IPI, o ICMS, o ISS ou qualquer outro tributo.

Deveras, a natureza federal, estadual ou municipal do crédito tributário presta-se única e exclusivamente a determinar qual ramo do Poder Judiciário processará e julgará o acusado, configurando ilegítima desigualdade de tratamento ofensiva, pois, à Carta Política franquear a aplicação do expressivo benefício da suspensão da pretensão punitiva aos injustos de competência da Justiça Federal e vedá-la peremptoriamente àqueles de competência da Justiça Estadual, em virtude de circunstância alheia ao controle do agente, estampada nos humores políticos do legislador competente, motivo da inexistência de programa de recuperação fiscal verificada, nos dias que correm, em diversos Estados e Municípios. Mutatis mutandis, seria o mesmo que permitir a aplicação do instituto da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95), quando cabível, apenas aos crimes contra a ordem tributária ofensivos ao patrimônio fiscal da União, e vedá-la ante a lesão ao patrimônio fiscal dos Estados e Municípios, em razão de circunstância absolutamente estranha ao Direito Penal e Processual Penal, como é a edição de um certo diploma legal por estes entes federativos.

De outra parte, não se pode perder de vista que em diversos Estados e Municípios onde o Refis ainda não foi instituído, como, v.g., o Município do Rio de Janeiro, a legislação em vigor autoriza a celebração de acordo de parcelamento do débito tributário[7], medida cuja finalidade é exatamente a mesma daquele programa, ou seja, o saneamento fiscal da empresa. O Refis, no entanto, sendo tranqüilamente o acordo fiscal menos rigoroso vigente no País, preconiza uma série de favores inimagináveis vis-à-vis com a legislação municipal carioca, como, por exemplo, a possibilidade de o valor de cada singular prestação ser determinada à razão de módicos percentuais incidentes sobre a receita bruta de cada mês da empresa, variáveis, em seus patamares mínimos, entre 0,3% e 1,5%[8]. Ou seja, não auferindo receita alguma em determinado mês, fica a empresa, naquele período, exonerada do pagamento da prestação.

Ora, se a finalidade do Refis é rigorosamente a mesma dos demais acordos de parcelamento de débitos tributários, e se os termos destes via de regra são bem menos flexíveis do que o daquele, o processo lógico de interpretação, guiado pelo raciocínio dedutivo, impõe a conclusão pela inexistência de motivo para não se estender a aplicação do art. 15 da Lei nº 9.964/2000 a condutas penalmente relevantes envolvendo créditos pertencentes aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, uma vez que “a idéia básica deve ser aplicada na íntegra, em todas as hipóteses que na mesma cabem”, dilatando-se, destarte, “o sentido ordinário dos termos adotados pelo legislador”[9]. Noutras palavras, ubi eadem ratio, ibi idem ius.

Demais, se o reconhecimento da extinção da punibilidade provimento que, investido da autoridade de coisa julgada material, aniquila em definitivo a pretensão punitiva estatal é admitido em relação a créditos tributários de toda natureza, ex vi do art. 34 da Lei nº 9.249/95, por que razão a mera suspensão desta mesma pretensão, medida notadamente menos radical, deveria revestir-se de alcance menor? Como se sabe, o que é válido para o mais, deve necessariamente prevalecer para o menos.

III – Conclusão

Assim, a única maneira de preservar a integridade do Ordenamento Constitucional, respeitando os processos de hermenêutica, repousa em estender o espectro de aplicação do art. 15 da Lei nº 9.964/2000 a condutas envolvendo créditos fiscais de natureza estadual e municipal, sempre que o agente opta por celebrar com a autoridade fazendária, antes do recebimento da denúncia, acordo de parcelamento do débito tributário, mesmo que este não seja o Refis, ante a inércia do legislador competente.

Assegura-se, outrossim, a igualdade de tratamento que não pode em hipótese alguma deixar de ser dispensada a situações idênticas sob a ótica penal, como, por exemplo, a supressão de imposto de renda ou de ICMS por meio da prestação de informações falsas à autoridade fazendária (art. 1°, I, da Lei nº 8.137/90), optando o agente daquele delito pela adesão ao Refis antes do recebimento da denúncia, e o deste, à inexistência de programa de recuperação fiscal, pela celebração de acordo de parcelamento da dívida tributária com o Fisco, nos termos da legislação vigente no âmbito do locus delicti comissi, igualmente antes do recebimento da exordial acusatória.

Com a suspensão da pretensão punitiva em ambos os casos, se afastam, a um só tempo, a extremada decisão pelo “trancamento” de inquérito policial ou de ação penal em razão do mero acordo de parcelamento do débito tributário, com fulcro no art. 34 da Lei nº 9.249/95, bem assim a grave afronta ao status diginitatis do agente, permitindo, por outro lado, que os órgãos próprios deflagrem (ou retomem) imediatamente a atividade persecutória penal à vista do eventual descumprimento dos termos do ajuste celebrado, sem a inconveniente necessidade de desarquivamento dos autos, imposta após a extinção de um processo sem resolução de mérito.

Por tal arte, resta despiciendo permanecer interpretando extensivamente o art. 34 da Lei nº 9.249/95, cuja aplicação deve ser reservada, em nosso entender, apenas às hipóteses de pagamento integral do débito tributário, como sempre desejaram alguns doutos, aplicando-se o art. 15 da Lei nº 9.964/2000 a todas as modalidades de acordo de parcelamento destes mesmos débitos, medida salutarmente menos precipitada do que o pronto “trancamento”, resguardando, pois, tanto os superiores interesses da Justiça como o patrimônio moral do agente.

[1]É absurdo, com todas as vênias, o entendimento de alguns doutos de que a suspensão da pretensão punitiva, em razão da suspensão do prazo prescricional que a acompanha, seria prejudicial ao acusado em contraste com o sistema anteriormente em vigor, de molde a inviabilizar a aplicação retroativa do art. 15 da Lei nº 9.964/2000. Ora, a suspensão da pretensão punitiva evita que o agente seja submetido aos vexatórios efeitos intrínsecos ao procedimento penal em Juízo, afastando o potencial estigma da condenação criminal, sendo intuitivo, por esse motivo, que a preservação do patrimônio moral do indivíduo sobrepõe-se, a passos largos, ao efeito suspensivo do prazo prescricional.

[2]Esta idéia suspensão da suspensão foi aduzida, com rara felicidade, pelo culto patrono e amigo dr. José Carlos Tórtima, durante prosaico debate que travamos acerca do tema.

[3]Verbis: Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia“.

[4]Esta orientação é hoje adotada, pacificamente, por todos os órgãos fracionários competentes para julgar matéria penal do E. STJ. Nesse sentido, dentre diversos outros julgados, REsp nº 426.378/PR, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 15.10.2002, v.u., HC021.561/PR, 6ª Turma Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 22.10.2002, v.u. e RHC011.598/SC, 3ª Seção, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 08.05.2002.

[5]Fragoso, Heleno CláudioLições de Direito Penal – Parte Geral, José Bushtsky editor, 1976, p. 95.

[6]Maximiliano, CarlosHermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 16ª ed., pp. 128/129.

[7]Art. 179 da Lei nº 691/84 e Decreto n° 17.963/99.

[8]Art. 2°, §4°, II, da Lei nº 9.964/2000.

[9]Maximiliano, Carlos. Obra citada, p. 199.

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