04 abr O papel dos programas de compliance na cegueira deliberada dos dirigentes empresariais
Pedro Augusto Amaral Dassan
Mestre em Ciências Jurídico-Criminais e Especialista em Direito Penal Econômico
Internacional e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal.
Pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Unicuritiba/PR. Advogado. pedrodassan@gmail.com
Resumo: O presente artigo tem como escopo compreender qual o papel que os programas de Compliance podem desempenhar na atuação e responsabilização penal dos dirigentes empresariais, em especial no que se refere à teoria da cegueira deliberada que vem sendo aplicada pelo judiciário brasileiro. Buscar-se-á, assim, abordar a dogmática da teoria da cegueira deliberada, o como e o por quê ela ser utilizada pelo judiciário brasileiro, em especial no âmbito empresarial. Analisar-se-á, brevemente, o contexto e a necessidade em voga da implementação dos setores de Compliance nas empresas para, ao fim, analisar a atuação do Compliance especificamente no que concerne à atuação dos dirigentes, fornecendo informações necessárias para uma atuação segura e eficiente e, em termos processuais, sua participação probatória acerca do (des)conhecimento pelos dirigentes dos elementos circunstanciais que compõem a situação fática em que se atribui um delito.
Palavras-chave: Cegueira deliberada. Compliance. Responsabilidade penal. Criminalidade empresarial.
Abstract: The purpose of this article is to understand the role that Compliance programs can play in the action and criminal liability of business executives, especially regarding the theory of willful blindness that has been applied by the Brazilian courts. For that, it is necessary to run an overall analysis of the theory of willful blindness, about the how and why it has been applied by the Brazilian courts, especially in the business area. It will briefly study the context and the current need for the implementation of the Compliance programs in the companies. Thus, it will analyze the performance of the Compliance program specifically regarding the performance of the executives, providing the necessary information for a safe and efficient acting and, in procedural terms, its importance for the formation of evidence about the (un)knowledge by the executives over the circumstantial elements that make up the factual situation in which a crime is attributed.
Keywords: Willful blindness. Compliance. Criminal liability. Business crimes.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho abrange e agrega diversos temas de grandes discussões e divergências no cenário jurídico atual. Neste sentido, tem-se a ascensão dos chamados programas de Compliance na seara empresarial, que catalisou o alargamento de exigências legais pela implementação de tais programas por parte das empresas.
Em paralelo, diante de uma conjuntura nacional em que a responsabilidade penal da pessoa jurídica se limita a crimes ambientais, verifica-se uma relevante expansão da busca pela responsabilidade penal dos dirigentes das empresas decorrentes da prática de ilícitos em/por suas respectivas instituições. Não obstante, o direito penal erigido sob o viés de uma tradicional
“criminalidade de rua” pouco oferece em termos de fundamentação material para a imputação de um fato delitivo a um empresário que raramente pratica um verbo nuclear de um tipo penal. Desta forma, cada vez mais a jurisprudência brasileira vem lançando mão de teorias do direito anglo-saxão para fundamentar a imputação de fatos típicos a dirigentes empresariais. Nessa óptica que vem à luz a teoria da cegueira deliberada (Willful Blindness), segundo a qual o agente, de modo deliberado, se coloca em situação de ignorância acerca de um fato ilícito para evitar responsabilidades jurídicas. A importação de referido instituto exige cautela diante de sua construção original sob um paradigma de um sistema de common law, alheio à sistemática da civil law romano-germânica brasileira.
O que se verifica de plano, portanto, é uma severa dificuldade pelo Estado de exercer sua persecução penal e ius puniendi na criminalidade empresarial, de maneira a se intensificar o uso de institutos opacos em suas estruturas dogmáticas sob o ponto de vista jurídico, de maneira ser necessária, pela doutrina, uma tentativa de elucidação de tais institutos e suas simbioses hoje presentes em um Direito Penal Econômico.
Embora a cegueira deliberada deva ser vista com muita cautela no que concerne à sua aplicação na realidade jurídica brasileira, deve ela ser enfrentada de maneira ampla e, inclusive, de maneira pragmática alinhada a esse contexto de expansão de implementação de setores de Compliance e responsabilidade dos dirigentes empresariais, averiguando qual o papel que tais programas de integridade podem desempenhar na estrutura de imputação penal a referidas pessoas, nomeadamente no que concerne à influência no elemento cognitivo do tipo subjetivo e como o Compliance pode atuar em termos processuais penais em relação a esta situação.
2. A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
Em um conturbado contexto dogmático jurídico-penal de uma criminalidade econômica, cada vez mais a jurisprudência brasileira vem lançando mão de novas teorias para fundamentar a imputação de fatos típicos a dirigentes empresariais, diante das dificuldades que encontra no ordenamento jurídico erigido a partir de um direito penal tradicional iluminista. Neste diapasão, passa também a importar institutos e teorias do direito anglo-saxão, posto, inclusive, que a realidade empresarial hoje sofre, per si, uma enorme influência norte-americana em razão da alta globalização e elevado desenvolvimento tecnológico que aceleraram a expansão do capitalismo e de um mercado de alta competitividade sem fronteiras.
Esta realidade imprime forças nas raízes tradicionais do Direito Penal, fazendo com que seus princípios basilares sofram distensões para atender as demandas da modernidade, de maneira que a doutrina, legislações e jurisprudências começam a quebrar o paradigma clássico consubstanciado no clássico brocardo societas delinquere non potest para inserir as pessoas jurídicas como sujeitos ativos de crimes, passíveis de imputação e sanções jurídico-penais.
Não obstante, há uma intrínseca necessidade de se buscar uma fundamentação dogmática da responsabilidade penal dos dirigentes empresariais, tendo em vista que a criminalidade empregada na empresa se desprende da ideia até então prevalecente no direito penal de que o principal responsável pelo delito é o executor direto do fato, assim como os elementos subjetivos do tipo são ainda mais nebulosos que uma “criminalidade de rua”, posto que ofuscado pelo ente empresa, dotada de complexa estrutura e uma vontade nem sempre alinhada com as pessoas físicas que a compõe.
O que se verifica no cenário jurídico brasileiro, hoje, é uma expansão da responsabilização penal dos dirigentes empresariais, diante de casos notórios como a operação “Lava Jato”, em que até agosto de 2018 foram realizadas 78 acusações criminais contra 328 pessoas por diversos crimes como lavagem de ativos, corrupção, entre outros[1]. Essa realidade é impulsionada pela limitada responsabilidade penal da Pessoa Jurídica no Brasil, que encontra respaldo no ordenamento jurídico tão somente no que se refere aos crimes ambientais. Sem embargo, leva-se em consideração que uma empresa somente pode agir de determinada maneira por meio de seus sócios e administradores (SERRA, 1999, p. 209), sendo estes os que possuem a capacidade de lesionar ou pôr em perigo bens jurídicos penalmente tutelados, instrumentalizado pela empresa em que atuam. A empresa é uma criação legal que opera como uma entidade fictícia, mas que é composta e gerida por pessoas que atuam como agentes na corporação (TODARELLO, 2003, p. 851–865), razão pela qual sempre haverá uma necessidade de se atentar à responsabilidade individual neste contexto.
Trata-se de uma realidade inerente à lógica da persecução penal e do ius puniendi que assentam o direito penal. Mesmo em contextos jurídicos de ampla aceitação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, os indivíduos, per si, continuam habitando o núcleo duro da responsabilização criminal. Inclusive nos EUA, em que se opera uma lógica jurídico-criminal distinta da civil law, há uma forte tendência em se aumentar a persecução dos dirigentes de empresa. Essa ideia foi corroborada em 2015, quando a então Vice Procuradora-Geral do Departamento de Justiça dos EUA emitiu um memorando a todo o departamento dando diretrizes no sentido de ressaltar a importância de se buscar a responsabilidade dos indivíduos por ilícitos praticados no âmbito das empresas – é o chamado Yates memo[2].
O problema passa a ser justamente como fundamentar dogmaticamente a responsabilidade dos indivíduos em uma criminalidade econômica e empresarial, já que a dogmática penal tradicional encontra resistência na dinâmica de funcionamento desse tipo de empreitada delitiva, seja pela dificuldade em subsunção típica de determinados comportamentos, seja pela natureza mais abstrata e difusa dos bens jurídicos expostos, seja pela imprecisão de atribuição de nexo de causalidade entre condutas e resultados, ou mesmo pela dificuldade de verificação dos elementos subjetivos da conduta e de participação no ilícito por parte de agentes inseridos em cadeias pulverizadas de atribuições em uma empresa.
Por essas razões o meio jurídico começa a maquinar a construção de novas teorias com o fito de atender a essas novas demandas e, dentro dessa mesma dialética, passa a flertar com construções jurídicas estrangeiras, de sistemas jurídicos díspares inseridos em realidades técnicas e culturais completamente alheias à realidade brasileira.
Dentre os diversos conceitos estrangeiros importados para nossa realidade jurídica, encontra-se a teoria da cegueira deliberada (chamada nos países da common law de Willful Blindness ou também ostrich instructions), segundo a qual um sujeito, mesmo podendo ter obtido informações específicas em uma determinada situação, prefere não as obter para se manter em um estado de incerteza (RAGUÉS I VALLÈS, 2013, p. 11). Em outras palavras, trata-se de uma situação em que um agente, de modo deliberado, se coloca em situação de ignorância acerca de um fato ilícito para evitar responsabilidades jurídicas. Essa conjuntura ganha contornos mais sensíveis no ambiente empresarial, em especial no que diz respeito à omissão e/ou atuação de dirigentes empresariais em relação a atos de seus subordinados e/ou clientes. Esta ignorância deliberada pode se dar de diversas formas no âmbito de atuação empresarial, principalmente nos casos de lavagem de ativos, em que o agente atua e cria mecanismos para não obter informações acerca da procedência dos bens (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 143).
Mas existem diversos outros casos no meio empresarial em que, havendo uma posterior verificação de ocorrência de ilícito envolvendo uma determinada operação, pode gerar uma suspeita de atuação em autocolocação em ignorância por parte do dirigente envolvido. A título exemplificativo, pode gerar uma suspeita em face do dirigente que realiza pagamentos a offshores em paraísos fiscais sem procurar obter as informações relevantes acerca das empresas envolvidas; ou quando se efetua pagamentos a intermediários em operações realizadas em países estrangeiros com elevada percepção de corrupção; ou quando não se realiza a devida prévia diligência na contratação de serviços de terceiros ou fornecedores. Nestas situações, sendo verificado posteriormente um eventual ilícito envolvendo os terceiros – como por exemplo um caso de corrupção, ou utilização de trabalho escravo por terceiro contratado para a cadeia produtiva, ou matéria-prima oriunda de extração ilegal de madeira obtida por fornecedor terceirizado, ou uma fraude fiscal realizada pelo contador terceirizado – o dirigente da empresa contratante pode ser suspeito de ter atuado em ignorância deliberada.
A teoria da cegueira deliberada vem socorrer a jurisprudência para fundamentar a responsabilidade penal dos dirigentes diante de um contexto em que a maioria dos delitos econômicos e empresariais não admite a modalidade culposa, de maneira que, não havendo dolo, não há responsabilidade penal (MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, 2016, p. 400). Facilita, assim, a prova de autoria e dos elementos subjetivos do tipo. Dita teoria nasce como indício do elemento volitivo do dolo eventual, mas foi ampliando-se até alcançar o elemento cognitivo do dolo, de maneira a relativizá-lo pela suposta autocolocação em ignorância quanto aos elementos objetivos do tipo, bastando, assim, seu conhecimento potencial e não mais seu conhecimento atual e efetivo (MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, 2016, p. 401).
A importação da teoria em análise exige cautela diante de sua construção original sob um paradigma de um sistema de common law, alheio à sistemática da civil law brasileira. Essa realidade é agravada pelas dificuldades que a dogmática encontra logo na base da discussão sobre a caracterização do elemento subjetivo do tipo, notadamente em relação ao dolo eventual, sobre o qual recai a análise acerca da subjetividade do agente em sua “autocolocação dolosa” em ignorância no plano de tomadas de decisões no cotidiano das atividades da empresa. A willful blindness tem origem nas cortes da Inglaterra na segunda metade do século XIX, mais especificamente a partir do caso Regina v. Sleep e, nos Estados Unidos da América, o caso originário de utilização desta teoria foi em Spurr v. United States e, em Leary v. United States a teoria começou a ganhar os contornos de aplicação atual (CALLEGARI; WEBER, 2017, p. 19–20).
No sistema da common law dos Estados Unidos da América não há uma dogmática jurídico-penal definida como se tem no ordenamento brasileiro. Há diversos sistemas que, algumas das vezes, são harmônicos e, outras vezes, são conflitantes entre si (LUCCHESI, 2018, p. 65). Dentro desta lógica opera também a análise dos elementos subjetivos que compõem um fato que possa ser tomado como delituoso. Tradicionalmente, a common law se refere aos elementos subjetivos como sendo a mens rea, termo de difícil definição unívoca, e que geralmente abrange um conceito amplo dos diversos elementos subjetivos de uma empreitada criminosa (LUCCHESI, 2018, p. 66–68).
Para superar o conceito de mens rea, passou-se também a se conceituar o termo culpability, o qual contém quatro requisitos mínimos para se definir os elementos subjetivos da conduta: purpose, knowledge, recklessness e negligence. Embora alguns autores façam correspondência entre purpose e dolo direto, knowledge e dolo eventual, recklessness e culpa consciente e negligence e culpa inconsciente, a verdade é que não há tal correspondência, tratando-se de institutos bem diversos dos daqui adotados. A origem, seu histórico de construção dogmática e aplicação em um sistema próprio daqueles não se sobrepõem aos elementos subjetivos do tipo aqui aplicados (LUCCHESI, 2018, p. 69–76).
A cegueira deliberada passa a ser utilizada como substituta do elemento knowledge no sistema anglo-saxão. Este elemento abarca o conhecimento do agente da natureza da sua conduta, da existência de circunstâncias especiais exigidos na definição legal do crime e de que o resultado previsto pela norma será praticamente certo pela prática de sua conduta naquelas circunstâncias (LUCCHESI, 2018, p. 78). O conhecimento em tela é constituído por um conhecimento de alta probabilidade, o que viabiliza uma aproximação da cegueira deliberada. Se o conhecimento da existência de um fato é elementar do crime, ele estará configurado se o agente estiver ciente de uma alta probabilidade de sua existência, salvo se efetivamente crer que essa probabilidade não exista (SILVEIRA, 2016, p. 266). Inserido nesta dialética, passouse a admitir um equivalente à exigência do conhecimento condicionada à alta probabilidade consubstanciado na cegueira deliberada a partir do caso Turner v. United States. Esta noção foi se moldando com o tempo e variando em diferentes jurisdições e casos concretos (SILVEIRA, 2016, p. 267–268).
De uma maneira geral, a teoria passa a ser utilizada como substituta do elemento knowledge quando o autor (a) está ciente da elevada probabilidade de existência de uma circunstância ou fato elementar do crime; (b) deliberadamente evita comprovar a existência de tal circunstância ou fato; (c) não acredita na inexistência do fato ou circunstância (LUCCHESI, 2018, p. 195).
No contexto brasileiro, mais especificamente, esta teoria vem sendo utilizada para a equiparação ao dolo eventual. Para o Código Penal Brasileiro, diz-se que o crime é doloso
“quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” – art. 18, inciso I. O dolo eventual, portanto, está conceituado na segunda parte da norma, materializado pela assunção do risco de se produzir o resultado. Não obstante, para ambas as modalidades de dolo (direto ou eventual), imprescindível o elemento cognitivo e, para o direito penal brasileiro, o conhecimento é o elemento dominante do dolo, sendo que quem pratica uma conduta conhecendo as circunstâncias elementares do tipo penal age com domínio sobre o risco criado pela conduta (GRECO, 2009, p. 893).
Dentro da dialética normativa conceitual de dolo do sistema pátrio, a ignorância deliberada, ou seja, o “tapar os olhos” não se adequa às noções de “saber”, de onde se extrai a vontade, e o “dever saber”, de onde se extrai a noção do risco (SILVEIRA, 2016, p. 275). Como pontuado por Greco (2009, p. 902), “tem o autor de agir com conhecimento tal que lhe confira o domínio sobre aquilo que está realizando”. O nível de abstração do que se deixa conhecer não é apto a gerar domínio, portanto.
Não obstante todas essas tormentosas questões, o presente trabalho não possui como objeto a discussão doutrinária sobre referida teoria, mas sim confrontar sua realidade de aplicação sob um viés teleológico de imputação penal dos dirigentes de empresa e o papel dos programas de Compliance para dirimir os problemas que, a fundo, baseiam hoje essa chamada
“cegueira deliberada”, dogmaticamente falando.
Importante, assim, ter-se em mente que a jurisprudência brasileira vem aplicando a teoria nos casos em que o autor (a) está ciente da elevada probabilidade da origem delituosa dos bens envolvidos; (b) age de maneira indiferente a esta elevada probabilidade; (c) deliberadamente mantém-se ignorante quanto aos fatos, sendo possível agir de outra forma (LUCCHESI, 2018, p. 195).
Em minucioso estudo, Guilherme Lucchesi (2018) identificou 65 decisões dos tribunais superiores, tribunais regionais e estaduais fundamentadas na cegueira deliberada, o que demonstra uma sensível tendência em sua aplicação. Como resultado, o autor identificou quatro grupos de formas de aplicação da teoria: (1) casos em que houve condenação por dolo eventual, aplicando a cegueira deliberada; (2) casos em que a cegueira deliberada foi utilizada como adorno retórico da decisão; (3) casos em que a teoria foi afastada; e (4) casos com condenação com base na teoria sem que estivessem presentes os requisitos do dolo eventual.
Diante disso, duas conclusões aqui são importantes: primeiro, que a cegueira deliberada se tornou uma realidade prática de condenação no judiciário brasileiro e, segundo, que, apesar das inconsistências dogmáticas e divergências dentro do próprio âmbito de aplicação, esta teoria passou a ser utilizada para resolver problemas dogmáticos e de prova antigos diante de situações novas complexas que resultam no alargamento da persecutio criminis e do jus puniendi. Isso tudo converge a um problema: a necessária atenção e até mesmo preocupação por parte do empresariado brasileiro a essas questões, posto que inseridos em um ambiente prolífico para situações que possam despertar a suspeita de ignorância deliberada.
Um dos grandes problemas na aplicação desta teoria no contexto atual brasileiro é que há um elevado grau de subjetividade e, consequentemente, de discricionariedade em sua análise pelo julgador. A aferição de ciência de alta probabilidade da presença de um elemento ou circunstância ilícita em uma determinada operação se dá ex post factum, portanto eivada de vieses cognitivos que impedem uma clareza apropriada sobre o fato naquela determinada conjuntura por um determinado sujeito. Se depois da ocorrência de um fato todas as circunstâncias e possíveis consequências possam parecer translúcidas ab initio, no momento de sua ocorrência o cenário nem sempre é dotado de tal clareza. Isso é o chamado viés da retrospectiva (hindsight bias). Para um correto julgamento, o julgador deve compreender qual informação estava disponível para o autor no momento da tomada de decisão. A tendência, entretanto, é de se superestimar a probabilidade de um evento após sua ocorrência (JABER, 2014, p. 02).
Para a criminalidade hodierna centrada no âmbito empresarial, as tomadas de decisões são dissipadas em funções horizontais e verticais dentro de uma complexa estrutura organizacional, o que dificulta a aplicação da teoria objetivo-formal de autoria (MUÑOZ CONDE, 2005, p. 58). Em uma organização, uma eventual conduta delitiva não é clara em sua matriz dogmática, sendo essa eclipsada pelo complexo funcionamento hierarquizado e descentralizado. O poder e as informações necessárias para exercê-lo é partilhado por um grande número de pessoas (NIETO MARTÍN, 2002, p. 13).
Diante das exigências regulatórias de mecanismos de prevenção dentro da empresa que vem se consolidando paulatinamente, os espaços de interpretação que recaem sobre condutas na seara empresarial acabam por se expandir em demasia. Em face da atual tendência e ascensão dos conceitos de boas práticas e de prevenção de ilícitos, aliada à uma expansão do punitivismo, passa-se a exigir cada vez mais uma atuação diligente pelo empresariado, alargando a subjetividade sobre o que pode ou não ser considerado uma ignorância deliberada em um caso concreto.
Se este panorama de criminalidade econômica representa, por um lado, uma dificuldade pelo Estado em verificar responsabilidades penais, também representa uma grande dificuldade e preocupação por parte dos dirigentes empresariais em atuar de acordo com todas as exigências legais de maneira a não implicar em uma prática delitiva, sobretudo em um contexto de expansão do agir penal em que o “deveria saber” passa a ser suficiente para uma condenação criminal.
3. OS PROGRAMAS DE COMPLIANCE EMPRESARIAL
Neste cenário de transformações da cultura corporativa e aumento da regulação, verifica-se uma cada vez mais acentuada ascensão de programas de Compliance no âmbito das empresas com vistas à prevenção de atividades ilícitas e consequentes responsabilizações jurídicas, sejam elas administrativas, civis ou mesmo penais pelas empresas.
A sociedade hoje se converge em uma dinâmica de ambientes complexos e de informações contraditórias que exigem tomadas de decisões cada vez mais rápidas e que representam riscos, principalmente no ambiente de negócios, que acaba por se tornar um produtivo campo para o desenvolvimento de condutas ilícitas.
Isso reflete, por conseguinte, no próprio mercado financeiro e no funcionamento das empresas e do Estado. Logo, o que se verifica hoje é uma relação simbiótica e cíclica de enredamento entre Estado e Empresas. Aquele, movimenta-se para regular e fiscalizar um ambiente financeiro, econômico e tecnológico de grandes complexidades. Amplia, desta forma, a atuação de agências reguladoras cada vez mais técnicas para a fiscalização e com maior poder regulatório. As empresas, por sua vez, buscam se adaptar às progressivas exigências do Estado regulador e, igualmente, aos ambientes complexos da modernidade, visando viabilizar sua atuação.
Ocorre que os executivos que detém o poder de decisão dentro de uma corporação normalmente não detêm conhecimento técnico jurídico suficiente para verificar a viabilidade de sua decisão perante o ordenamento jurídico ao qual está sujeito. Embora hoje esses executivos saibam que os riscos legais e de Compliance são uma realidade empresarial, eles ainda pouco têm uma real compreensão destas ameaças.
Isso se deve, antes de tudo, pela novidade de tais ameaças. Além disso, estes executivos possuem muita formação operacional e de negócios, e pouca formação em gerenciamento de riscos. Para executivos acostumados com o business, as discussões nesta seara são muito mais atrativas do que as discussões legais e regulatórias (KURER, 2015, p. 13–14). Essas razões culminam à necessária consulta a profissionais da área que podem emitir seus respectivos pareceres sobre a legalidade de um ato, bem ou serviço (DASSAN, 2017, p. 23).
Em ambientes empresariais complexos, muitas vezes a incerteza da legalidade de determinadas condutas acaba prevalecendo, de maneira que se passa a adotar uma política interna baseada em lógica atuarial de gestão de riscos, onde se analisa os benefícios da conduta levando-se em conta a possibilidade dessa conduta posteriormente ser tida como ilícita e suas respectivas consequências (DASSAN, 2017, p. 25).
Trata-se de uma análise econômica do direito, calcada na teoria da escolha racional desenvolvida inicialmente por Gary Becker (1974), e que consiste na ideia de que “o indivíduo, em determinadas situações ou diante de certos incentivos, faz uma análise racional entre o que ele espera ganhar com a conduta – o benefício – que pode ser dinheiro, poder, entre outros, e o custo a ser por ele suportado” (DASSAN; GIL; FONSECA, 2016, p. 395), que por sua vez pode consistir na probabilidade de sofrer uma persecução penal e ser efetivamente punido. Em se tratando de um contexto empresarial isso se torna ainda mais saliente, na medida em que o objetivo maior neste meio é justamente a obtenção do maior lucro possível (maximização da utilidade esperada – benefício), que acaba por ser ponderada dentro da própria avaliação de riscos (risk assessment).
A ideia da escolha racional é incorporada na chamada nova criminologia administrativa – termo cunhado por Jock Young (1993) – que passa a enfrentar a criminalidade como uma realidade racional e oportunista, trabalhando na prevenção situacional do crime, manipulando o ambiente, influenciando na decisão do potencial criminoso mediante a análise das oportunidades facilitadoras da ação delitiva e dos riscos nela envolvidos. Para isso, aplica-se, além da teoria da escolha racional, a teoria da atividade de rotina e da prevenção situacional. É possível se verificar os conceitos da teoria da prevenção situacional (além da ideia da análise econômica do Direito Penal) no âmbito das empresas pelo próprio advento de programas e processos internos com o propósito de reduzir a oportunidade de se cometer delitos nas organizações. Ou seja, o próprio conceito dos programas de integridade também inclui ideias de prevenção situacional[3], tendo vista que se trata de setores próprios da corporação responsável pela implementação de sistemas e mecanismos de controle e fiscalização interna para prevenção e até mesmo repressão de práticas ilícitas (DASSAN, 2017, p. 26).
Como agravante dessas águas tormentosas da realidade do mercado moderno, é necessário se ter em consideração o fator de incerteza jurídica. O que se verifica, conforme já explanado, é que a nova dinâmica em que o mundo econômico e social está inserido gera um novo panorama de ambientes jurídicos complexos, de maneira que a dificuldade na prevenção de condutas antinormativas não se limita a uma dificuldade de tutela por parte do Estado, mas principalmente de forma intrínseca às empresas.
Além de dita complexidade per si, é preciso considerar, ainda, o caos e o pluralismo legal decorrente do conflito da multiplicidade de fontes normativas, como por exemplo: conflitos entre leis de diferentes entes federativos; entre normas de diferentes agências reguladoras; entre normas nacionais e internacionais; conflitos decorrentes de soft law do âmbito do mercado; entre outras. Essa realidade dificulta em ter a certeza de que se está agindo em conformidade com toda a ordem legal dentro de uma empresa. Embora exista, por parte dos executivos, um conhecimento generalizado acerca das questões legais locais por estas já estarem neles internalizadas, este pluralismo e uma ordem jurídica globalizada impedem os dirigentes de agirem sozinhos sem um apoio pericial jurídico e de integridade na condução de suas empresas (KURER, 2015, p. 18–22 e 39).
As empresas hoje devem, em regra, atentarem-se para as chamadas “big nine”, que são as principais legislações afetas ao mercado, entre elas: as legislações anticorrupção (não somente a brasileira – Lei 12.846/2013 – como também, v.g., a FCPA; SOX e UK Bribery Act); legislações antitruste (como por exemplo a Lei nº 12.529/2011); leis de prevenção à lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1988, com as modificações da Lei nº 12.683/2012); as de proteção ao consumidor, as de fraudes corporativas, tributárias, trabalhistas e de proteção ambiental, todas muito atreladas, direta ou indiretamente, a consequentes ilícitos penais. Além dessas legislações e regulações emitidas por agências reguladoras, as empresas devem ainda apreciar e cumprir as regras de governança (como guidelines e regras internas), contratos, autorregulação (normativas criadas pelo próprio setor), soft laws e regras auxiliares (KURER, 2015, p. 74-82; 97-99). A tudo isso deve se dar uma minuciosa atenção o setor de integridade.
Uma grande preocupação que permeia a temática de Compliance, seja na doutrina, seja no judiciário ou mesmo no legislativo, é justamente o que se considera como um programa efetivo de Compliance para a aplicação da lei penal. Uma das discussões reside no fato de que muitas empresas poderiam instalar departamentos de Compliance tão somente para evitar a responsabilidade penal, deixando-se de lado a intenção das boas práticas ou até mesmo para se praticar crimes dolosamente, fugindo da responsabilização criminal, o que tem dificultado a evolução legislativa neste sentido. Daí a importância de um delineamento de um modelo efetivo.
O conceito e modo de funcionamento de um programa de Compliance, contudo, não é de fácil definição. A variedade de riscos é enorme e cada empresa possui suas respectivas particularidades. A tarefa das empresas não é cumprir especificamente com o direito penal, mas sim contar com mecanismos de gestão e controles internos que as permitam cumprir com toda a normativa atinentes, de maneira muito mais abrangente do que propriamente evitar delitos de natureza penal (NIETO MARTÍN, 2013, p. 27; SIEBER, 2013, p. 08).
Além da variação de acordo com a natureza da atividade, o Compliance tem um alcance além da questão estritamente jurídica, envolvendo riscos de outras naturezas, como na área de finanças, economia, contabilidade, entre outras. Há um grande envolvimento, também, de uma esfera comportamental atrelada à promoção de condutas íntegras, éticas, em todos os níveis internos da empresa, por meio da comunicação, treinamentos e sanções (KURER, 2015, p. 140, 189–190).
Há hoje movimentos concretos para o estabelecimento de diretrizes gerais norteadoras da estruturação de programas de cumprimento, sempre devendo, ainda assim, levar em consideração as peculiaridades de cada empresa, que são as mais indicadas para determinar os riscos inerentes às suas atividades e, assim, prover melhores formas e soluções de cumprimento (KURER, 2015, p. 61).
Os estândares que dão uma base sólida para a composição de um efetivo programa de cumprimento hoje podem ser extraídos de diversos documentos legais e regulamentares, além da doutrina e diversas diretrizes de órgãos públicos. Neste sentido, o Decreto nº 8.420/2015, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013, determina uma série de parâmetros que deve ter um programa de integridade. Igualmente, em âmbito estrangeiro, as Sentencing guidelines dos EUA fornecem algumas diretrizes sobre o que deve conter um programa de Compliance, além das diretivas contidas na Foreign Corrupt Practices Act e Sarbanes-Oxley, para citar alguns exemplos. De grande importância, ainda, os frameworks COSO e também ISO, que fornecem definições padrões de controle interno e gerenciamento de riscos, por exemplo.
Um programa de Compliance está assentado em três pilares: prevenção, detecção e informação. A partir destes pilares que se vai estruturar o programa, que passará por etapas de desenho, implementação e controle interno, contendo diversas tarefas, tais como: (a) o préestabelecimento dos objetivos empresariais, definindo os valores da instituição. A partir disso, a realização da (b) correta avaliação e identificação dos riscos correspondentes à atividade desenvolvida pela empresa, incluindo os delitos mais prováveis de serem cometidos, os setores da empresa mais afetados e a eficiência das medidas de controle existentes. Definidos os riscos, é necessária (c) a criação de códigos éticos e de condutas e políticas internas, com sua consequente (d) publicidade e divulgação interna das disposições a serem seguidas e respeitadas por todos os colaboradores da empresa, em paralelo a uma (e) formação e capacitação para assegurar-se que todos os funcionários são competentes para cumprir com sua função em consonância com os valores éticos e normativos.
Imprescindível, ainda, a (f) delimitação dos âmbitos de competência, ou seja, uma correta distribuição e configuração das posições e funções de cada pessoa física e departamentos intraempresariais. Delimitar com clareza cada esfera de competência para cada processo na empresa e, assim, (g) criar mecanismos de comunicação interna, de detecção e sanção, ou seja, criar canais de comunicação interna para assegurar uma gestão de conhecimento, onde a cúpula diretiva deve receber toda informação de riscos relevantes (bottom-up) e, igualmente, sistemas de investigações internas com canais de denúncias e de whistleblowing e consequentes sanções disciplinares.
Por fim, é necessário, ainda, uma (h) avaliação periódica da eficácia do sistema e a (i) documentação das atividades de Compliance, inclusive para a própria defesa da entidade perante as autoridades oficiais[4].
A função dos programas de integridade está intimamente ligada às boas práticas e prevenção de ilícitos em prol da instituição empresarial. Entretanto, dentro de uma realidade em que se prima pela responsabilização penal das pessoas físicas – no caso, os sócios, administradores ou dirigentes das empresas – é necessário se averiguar qual o papel que tais programas de integridade podem desempenhar na estrutura de imputação penal a referidas pessoas, nomeadamente no que concerne à influência no elemento cognitivo do tipo subjetivo. Esta influência deve ser analisada sob o caráter de mecanismos de gestão e controles internos visando boas práticas para um efetivo programa que traga uma real e prática segurança jurídica aos empresários diante da realidade expansiva do direito penal.
4 O PAPEL DO COMPLIANCE NA CEGUEIRA DELIBERADA
O atual contexto social e econômico global já aqui previamente delineados confluem para uma mudança de paradigma na questão da responsabilidade das empresas. Isso serviu como catalisador dos programas de integridade que passaram a auxiliá-las a se amoldarem a essa nova cultura de cumprimento e ética no ambiente de negócios. Trata-se de um ambiente rigoroso voltado às boas práticas e à prevenção de ilícitos para cumprir, também, com uma função social que até então era coadjuvante no ambiente de negócios.
O ponto é que por trás da pessoa jurídica há indivíduos sobre os quais recaem as mesmas exigências, posto que a organização é gerida pelas pessoas individuais, as quais diariamente tomam decisões que se consubstanciam na atuação da empresa perante a comunidade e o Estado. Da mesma forma que incide a responsabilidade jurídica à instituição, incide também aos dirigentes desta. Na seara criminal de maneira ainda mais sensível aos indivíduos, como já explanado, especialmente diante de um progressivo anseio em se punir pessoas por condutas lesivas a bens jurídicos coletivos e difusos.
Por essa razão há de se falar também em um papel essencial dos programas internos de integridade em oferecer o suporte de boas práticas e segurança aos dirigentes e não somente à instituição como um todo. Assim, dois vieses são importantes: primeiramente sob o ponto de vista do dirigente da empresa, no sentido de um programa de Compliance lhe fornecer maior segurança em suas tomadas de decisões e, ainda, sob o ponto de vista judicial, em fornecer ao aplicador da lei – e também, quiçá, ao próprio sujeito alvo de uma eventual persecução criminal – maior suporte probatório acerca do conhecimento pelos dirigentes dos elementos circunstanciais que compõem a situação fática em que se atribui um delito.
Trata-se de uma intersecção entre Compliance e processo penal. A própria empresa poder oferecer o suporte probatório para dirimir questões obscuras, especialmente no tocante ao ponto da cegueira deliberada. Importante salientar, entretanto, que não se trata de fornecer documentos sigilosos ou uma prova contra si, questões ainda muito controvertidas no tocante ao Compliance e que aqui não cabe adentrar-se. Trata-se, sim, de demonstrar que a empresa possui um eficiente programa de Compliance que auxilia de maneira adequada todos os seus colaboradores.
A busca pela minimização de riscos de uma possível “cegueira deliberada” corresponde à busca por um programa efetivo de Compliance. Um setor estruturado que atua adequadamente é capaz de viabilizar o acesso às informações e conhecimentos necessários sobre os elementos que compõem uma determinada operação de negócios por parte do dirigente. De outra banda, demonstra ao Estado o comprometimento pelo sujeito em estar em conformidade e pelo atuar de maneira lícita. Diminui, neste sentido, a subjetividade e discricionariedade do julgador na análise ex post acerca do conhecimento das informações e do atuar em si do agente no momento do fato, de maneira a reduzir seus vieses cognitivos.
No tocante ao ponto da cegueira deliberada, a práxis jurisprudencial pátria tem demonstrado uma tendência em responsabilizar penalmente o sujeito quando este não tem conhecimento do ilícito de fundo envolvendo uma operação, e se presume que ele não quis saber acerca deste fato, mesmo não havendo provas em concreto acerca de tal desiderato. O Compliance pode ter o condão de trazer uma segurança jurídica na interpretação de suas decisões pelos órgãos de persecução penal, e não tão somente evitar que essa situação de ignorância efetivamente ocorra.
Nesta senda, interessante mencionar um exemplo: a própria FCPA prevê a cegueira deliberada em seu Título 15, seção 78dd-1(f)(2)(B), quando considera que o conhecimento da existência de uma circunstância particular para o cometimento de uma ofensa está presente quando o sujeito tem ciência de que há uma alta probabilidade da existência de tal circunstância[5].
Este pequeno exemplo demonstra a necessidade dos responsáveis pelo Compliance se atentarem a este fato, estando sempre conscientes da possibilidade da ocorrência da cegueira deliberada no cotidiano da empresa, tendo em vista a grande dificuldade em se reunir e trabalhar com incontáveis informações diárias, devendo, portanto, tomar todas as precauções para evitála.
O ponto inicial vital para seguir este caminho é o comprometimento absoluto da alta administração da empresa com o programa, de maneira que esta deve estar completamente alinhada com o setor, dentro dos ditames de “tone at the top”[6] e de governança corporativa. A cúpula da empresa deve participar do desenho e implementação do programa, colaborando desde com a criação dos códigos de conduta e ética até da avaliação de riscos – demonstrando conhecer, assim, seu negócio (Know Your Business) –, e sempre acompanhar a atividade constante de controle interno realizada pelo setor, recebendo os relatórios e incluindo os responsáveis nas reuniões e assembleias, por exemplo.
Todo este comprometimento, por si só, já tem a capacidade de demonstrar, a priori, que os dirigentes estão engajados em não se envolver em atividades ilícitas. Ao contrário, uma falta de comprometimento e descaso ao Compliance pode vir a ser interpretada como uma tendência da administração em “tapar os olhos” deliberadamente a situações suspeitas diversas na empresa. Para se ter ideia da importância da cegueira deliberada e do tone at the top, as Sentencing guidelines[7] considera ineficaz um programa de integridade se um indivíduo de elevado cargo de diretoria de uma pequena empresa, ou com uma substancial autoridade, mas não de elevado cargo de diretoria, de qualquer organização, participar, tolerar ou deliberadamente ignorar um ilícito. Este critério condiz com a avaliação dos tribunais norteamericanos acerca do compromisso dos dirigentes em promover uma cultura organizacional ética. Para firmar o devido “tone at the top”, nos termos da própria Sentencing guidelines, a administração, no exercício de suas funções, deve promover uma cultura organizacional que encoraje a conduta ética e o compromisso com a lei (STUCKE, 2014, p. 805–806).
Uma das tarefas precípuas do programa e de manifestação do “Know your business” é a prévia e devida avaliação de riscos. Elemento básico e imprescindível de qualquer programa de integridade, e que permite alocar racionalmente os recursos preventivos da empresa aos riscos relevantes (NIETO MARTÍN, 2015a, p. 153). Para o devido mapeamento dos riscos, é preciso conhecer bem as leis e os marcos regulatórios afetos aos negócios da organização. Aqui, mais uma vez, exige-se o engajamento da alta administração e diretoria da empresa. É a partir da matriz de riscos que se facilita a emissão de “red flags” em situações suspeitas a todos os colaboradores da empresa. Com o conhecimento da matriz de riscos e da situação suspeita, mitiga-se a ausência de informações necessárias para realizar uma operação.
Nesta perspectiva, bem esclarece Adán Nieto (2015a, p. 161) que a análise de riscos com caráter geral é uma ferramenta de informação indispensável para que o conselho de administração ou a direção da empresa possa efetuar sua política de riscos e tomar decisões de maneira diligente. Aduz, ainda, que em relação aos riscos penais, constitui um documento essencial para a defesa da entidade e, como já exposto aqui, igualmente para a defesa dos dirigentes.
Consolidado o desenho e implementado o programa, outra tarefa de grande importância é o treinamento de todos os colaboradores, incluindo a alta cúpula da empresa. Um devido e constante treinamento de integridade e cumprimento, alinhado com a conscientização do mapa de riscos real da organização, permite reduzir posteriores condutas antiéticas e mesmo ilícitas não apenas dolosas como também negligentes, instigando a atenção de todos os colaboradores às situações sensíveis no dia-a-dia de suas atividades.
Na primeira parte deste trabalho mencionou-se alguns exemplos de situações que, sendo posteriormente aferido um ilícito envolvendo uma operação da empresa, poderia haver uma interpretação de cegueira deliberada por parte das pessoas envolvidas. É o caso, por exemplo, de pagamentos efetuados a intermediários em operações realizadas em países de alta percepção de corrupção onde é verificado posteriormente o pagamento de suborno a autoridades governamentais; contratação de fornecedores de insumos extraídos de maneira ilegal; fraudes fiscais realizadas por contadores terceirizados; ou a realização de operações financeiras suspeitas em prol de um cliente; entre outras.
Todas essas situações envolvem uma prática ilícita praticada diretamente por um terceiro, mas que tem uma relação com a empresa contratante nas operações sob suspeita. Geralmente são essas ocasiões as mais propícias para um atuar em cegueira deliberada ou uma suspeita de que um dirigente assim tenha atuado. Por conseguinte, são nessas situações que o Compliance pode ter um papel mais ativo na mitigação destes riscos.
Com o programa já desenhado e implementado, na etapa operacional do controle interno diário, o setor de Compliance deve realizar a devida diligência (due diligence) em todas as relações com terceiros, sejam eles fornecedores, parceiros ou mesmo clientes. Geralmente esta devida diligência se compõe em três fases: (a) pré-contratual, onde se deve coletar todas as informações possíveis a respeito do terceiro; (b) contratual, onde se deve estabelecer cláusulas contratuais que permitem a rescisão unilateral pela contratante, ser ressarcida por eventuais prejuízos decorrentes de práticas ilícitas e a possibilidade de supervisar suas atividades; (c) póscontratual, onde se mantém uma constante supervisão das atividades (NIETO MARTÍN, 2015b, p. 361).
Adán Nieto (NIETO MARTÍN, 2015b, p. 360), com muita propriedade, afirma que, no caso de responsabilidade individual, a devida diligência serve como meio de prova para desmontar a afirmação de que haviam fechado os olhos ante a possibilidade de ocorrência de fatos delitivos, ou que os indícios não eram assim tão evidentes. No que concerne à questão do dolo eventual, a due diligence serve como argumento de defesa, mostrando que não se aceitava a participação no risco da produção de um resultado delitivo.
Demonstrar a devida prévia diligência, comprovando-se que se adotou os padrões comuns exigidos, e que todas as informações coletadas foram repassadas a todos os envolvidos na empresa, é capaz de excluir a “elevada probabilidade da ocorrência de um ilícito de fundo”, não gerando, assim, um risco juridicamente reprovável, em especial pelos dirigentes, afastandose, desde logo, a imputação objetiva sobre o sujeito.
A compartimentalização de informações na complexa estrutura da empresa pode gerar uma falta de conhecimento pelos dirigentes responsáveis pelas tomadas de decisões na empresa capazes de culminar em uma falha ilícita e, assim, ser interpretada como uma espécie de autocolocação deliberada em ignorância.
O setor de Compliance, logo, deve servir como agregador de informações de riscos que devem ser repassados a todos os interessados em obtê-las. A documentação a todos os níveis pelos responsáveis pelo departamento é de suma importância, tanto para cientificar os dirigentes sobre os riscos, quanto como meio de prova de que foram adotados todos os mecanismos comuns de devida diligência, ou seja, de que toda a atuação por parte dos sujeitos da empresa se deu em níveis de riscos permitidos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mercado global da atualidade, como reflexo de uma sociedade de uma modernidade de crises, encontra-se em um momento de grande profusão, reflexão e inflexão. Novas demandas e novas formas de se encarar o mundo dos negócios tem exercido pressão no funcionamento das empresas. Conceitos como “cultura de compliance”; “ética corporativa”,
“fazer a coisa certa” e “função social da empresa” emergem dando um novo sentido para o papel do mercado econômico na sociedade.
Embora se possa extrair diversas consequências positivas destas mudanças de paradigmas, existe um outro lado no sistema jurídico que exige uma cautela maior. Em momentos de incertezas, há uma maior tendência em resolver os novos problemas sem a devida atenção à técnica jurídica. Para o direito penal, ramo de ultima ratio e que carece de maiores rigores, tal panorama é ainda mais sensível.
Na ânsia de se responder a qualquer custo as exigências da sociedade por responsabilidades decorrentes de condutas ilícitas, corre-se o risco de se furtar dos princípios basilares do direito penal. E é nesta exata corda suspensa da dogmática que se caminha o sistema jurídico-penal ao aplicar teorias que não se amoldam devidamente ao ordenamento pátrio para se alcançar condenações a qualquer custo.
A teoria da cegueira deliberada, da forma como vem sendo aplicada, como restou demonstrado, é um exemplo concreto deste fenômeno. Cabe à doutrina procurar realinhar e ajustar essa anomalia, aplicando conceitos dogmáticos técnicos e necessários. Em paralelo, é possível procurar utilizar mecanismos práticos para evitar uma persecução penal expansiva e desmoderada. Dessa forma é possível voltar os olhos aos mecanismos de Compliance, maneira positiva de se tentar lidar com as novas demandas sem fulminar direitos fundamentais e basilares, embora também em estágios embrionários.
É assim que, analisando o funcionamento dos programas de integridade, permite-se concluir que eles podem atuar como uma barreira de contenção eficaz aos anseios punitivistas na seara empresarial. Demonstrou-se, no presente trabalho, que um programa de Compliance idôneo pode ter um papel de suma importância na atuação segura daqueles que tomam decisões nas empresas, garantindo um atuar dentro dos âmbitos do risco permitido, e diminuindo o alvedrio e discricionariedade do judiciário no julgamento dos dirigentes. A devida demonstração da existência e funcionamento de um programa combativo em suas funções é capaz de formar elementos de prova suficiente para este desiderato.
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[1] Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1ainstancia/parana/resultado>. Acesso em: 23 ago. 2018.
[2] Disponível em: <https://www.justice.gov/archives/dag/file/769036/download>. Acesso em: 12 jul. 2018.
[3] “A prevenção situacional compreende medidas de redução da oportunidade criminosa que não abrange toda a gama de delitos possíveis, envolvem a gestão, design e manipulação do ambiente imediato, em uma forma sistemática e permanente, e que tem por objetivo tornar a prática de crimes mais difícil e arriscada, removendo-se as vantagens idealizadas pelo agente. Para tanto, há um extenso número de meios, como a vigilância, os obstáculos físicos, os controles de acesso, desviar o delinquente do alvo, eliminar ou reduzir o benefício potencial de um delito e controlar outros instrumentos que sirvam para cometer delitos” (DASSAN; GIL; FONSECA, 2016, p. 399).
- [4] Tais elementos são extraídos da doutrina, e tratam-se de elementos gerais e básicos que constituem um programa de integridade. Como exemplo, cita-se: SIEBER, Ulrich. Programas De “Compliance” En El Derecho Penal De La Empresa: Una nueva concepción para controlar la criminalidad económica. In: El derecho penal económico en la era de la compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 08-09. VILA, Ivó Coca ¿Programas de Cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria; MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Eds.). Criminalidad de empresa y Compliance: Prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013, p. 55-59 e NIETO MARTÍN, Adan. Fundamentos y estructura de los programas de cumplimiento normativo. (Adan NIETO MARTÍN, Ed.) Manual de cumplimiento penal en la empresa.
[5] FOREIGN CORRUPT PRACTICES ACT. Disponível em: <https://www.justice.gov/sites/default/files/criminalfraud/legacy/2012/11/14/fcpa-portuguese.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2017.
[6] A expressão tone at the top descreve a necessidade de o topo da empresa e do conselho estabelecer uma cultura ética a partir de cima e que guie todo o resto da empresa. Trata-se de uma das mais difíceis missões da liderança de uma empresa: fazer uma mensagem chegar à toda a empresa, ouvida e compreendida. Se a liderança de uma companhia for falha em sua integridade, provavelmente toda a organização é corrupta (KURER, 2015, p. 231).
[7] As Sentencing Guidelines são diretrizes para a formulação de sentenças federais elaborada pela Sentencing Comission do poder judiciário norte-americano, onde dedica, em seu capítulo oitavo, à individualização das sanções das pessoas jurídicas, prevendo a diminuição das sanções caso a empresa tenha implementado programas apropriados de Compliance.