28 ago Projeto de Lei número 054/2017, da Câmara dos Deputados
Excelentíssima Senhora Presidente da Comissão Permanente de Direito
Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros
Indicação número 054/2017 – Projeto de Lei da Câmara dos Deputados número 7023/2010, de autoria do Deputado Federal Wadih Damous (PT-RJ)
Proposta de reforma dos artigos 396, 396-A e 397 do Código de Processo Penal, para estabelecer que a oferta e análise da petição defensiva de resposta à acusação antecederá a decisão de recebimento da denúncia. Pertinência da proposta, por extrair máxima efetividade das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Parecer pela aprovação do projeto, com sugestão de modificação de redação.
- O Projeto de Lei mencionado em epígrafe busca alterar a redação dos artigos 396, 396-A e 397 do Código de Processo Penal, para estabelecer que a primeira manifestação defensiva do réu nos autos, após a deflagração da ação penal, deverá se dar antes da decisão judicial de recebimento da denúncia, e não após, como ocorre atualmente nos termos da legislação em vigor, sugerindo a seguinte redação àqueles dispositivos legais:
“Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
Parágrafo único
….………………………………………………………………
Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário.
- § 1º A exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste Código.
- § 2º Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.
Art. 397. O juiz deverá, após o oferecimento da resposta a que alude o art. 396-A:
- reavaliar as hipóteses de rejeição da denúncia, constantes do art. 395;
- receber a denúncia ou queixa e absolver sumariamente o acusado quando verificar:
- a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;
- a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;
- que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou
- extinta a punibilidade do agente.
III- receber a denúncia ou queixa, dando prosseguimento à ação penal.”
- A proposição legislativa ora em análise foi apensada em março próximo passado ao Projeto de Lei número 8.045/2010, do Senado Federal, que trata da reforma integral do Código de Processo Penal, ao qual, por sua vez, está apensado, dentre outros, o Projeto de Lei número 7.987/2010, da Câmara dos Deputados, que consubstancia a proposta de reforma integral de Código de Processo Penal elaborada pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, ofertada ao Congresso Nacional pelas mãos do nobre Deputado Federal Miro Teixeira.
- A última movimentação do Projeto de Lei número 8.045/2010 remonta a julho próximo passado, consistindo na aprovação de requerimento para a realização de audiência pública com o Ministro Torquato Jardim com o objetivo de debater a proposta legislativa.
- O que ora se pretende, na realidade, já havia sido proposto ao Congresso Nacional no ano de 2001, notadamente por meio do Projeto de Lei número 4207/2001, elaborado pelo Ministério da Justiça em conjunto com uma comissão de renomados juristas presidida pela saudosa Professora Ada Pelegrini Grinover, que, sobre o tema, previa em sua redação original que a decisão de recebimento da denúncia ocorreria somente após a apresentação da resposta à acusação pelo réu, nos seguintes termos:
“Art. 395. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou a queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito no prazo de dez dias, contados da data da juntado do mandado aos autos ou, no caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou de defensor constituído.” Art. 396. O juiz, fundamentadamente, decidirá sobre a admissibilidade da acusação, recebendo ou rejeitando a denúncia ou queixa.”
- Lamentavelmente, contudo, o Projeto de Lei número 4.207/2001 sofreu diversas modificações tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal no curso da sua tramitação, resultando na minirreforma processual veiculada pela Lei número 11.719/2008. Acerca do ponto de interesse no momento, ao invés de simplesmente prever o recebimento ou a rejeição da denúncia após a apresentação dos argumentos defensivos, como originalmente proposto, o texto sancionado pela Presidência da República estabeleceu dois momentos distintos de análise da admissibilidade da acusação pelo julgador: o primeiro, logo após a oferta da denúncia, antes da citação do réu (artigos 395 e 396); o segundo, em seguida à apresentação da petição de resposta à acusação, ocasião em que o réu “poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interessa à sua defesa (artigos 396-A e 397).
- De acordo com o texto convertido em lei, cada momento de admissibilidade da acusação permite ao julgador a análise de hipóteses distintas de recusa da imputação. Em um primeiro momento, o julgador deverá rejeitar a denúncia ou queixa quando for manifestamente inepta, faltar pressuposto processual, condição para o exercício da ação penal ou justa causa para a ação penal (artigo 395); já no segundo momento, após a manifestação defensiva, o juiz deverá absolver sumariamente o réu quando verificar a existência de causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade, que o fato narrado evidentemente não constitui crime ou que ocorreu a extinção da punibilidade (artigo 397).
- Em sintomático indício de hostilidade ao direito de Defesa, não tardou a produção de julgados no quase inacreditável sentido de que, embora possa o acusado, em sua petição de resposta à acusação, “arguir preliminares e alegar tudo o que interessa à sua defesa”, o juiz não estaria obrigado a analisar as suas alegações de falta de justa causa e inépcia da denúncia, por exemplo, pois, segundo esta orientação jurisprudencial, após a primeira decisão de admissibilidade da acusação, prévia à intervenção defensiva, somente as hipóteses do artigo 397 poderiam ensejar a rejeição da imputação, por meio da denominada absolvição sumária.
- Aniquilou-se, assim, a prerrogativa do acusado de, em sua resposta à acusação, “arguir preliminares e alegar tudo o que interessa à sua defesa”, pois de nada adianta assegurar-lhe o direito de reagir à imputação se não há para o magistrado, em contrapartida, o dever de dizer o que pensa a respeito. O direito de poder falar para ninguém, convenhamos, não serve de absolutamente nada, convertendose em artigo de mera decoração para o dispêndio inútil de papel e tinta.
- É verdade que a evolução da jurisprudência das Cortes Superiores atenuou (mas não expurgou) esta ilegalidade, dada a sua óbvia incompatibilidade com o princípio constitucional de motivação das decisões judiciais, para exigir que o julgador examine os argumentos defensivos esgrimidos na resposta à acusação. Mas até hoje (quase 10 anos depois da minirreforma de 2008) o advogado militante na área penal ainda se depara com frequência com as lamentavelmente famosas decisões adesivo, pelas quais o julgador, ao decidir sobre a petição de resposta à acusação, se limita a colar uma etiqueta nos autos contendo a data da audiência de instrução e julgamento preenchida à caneta, juntamente com um texto padronizado com os dizeres do tipo “não estão presentes as hipóteses de absolvição sumária previstas no artigo 397 do CPP, razão pela qual mantenho a decisão que recebeu a exordial”, sem dedicar uma palavra sequer ao esforço defensivo para, por exemplo, demonstrar que a denúncia é inepta do ponto de vista formal e/ou material.
- Não é difícil de imaginar que, como regra, somente quem dispõe de condições financeiras para contratar patronos diligentes poderá se insurgir contra abusos desta natureza, levando o seu caso às Cortes Superiores, como, aliás, tem ininterruptamente ocorrido de 2008 para cá, em mais uma página de pouco glamour, mas repleta de mérito na história da Advocacia, resultando em aporte de densidade à garantia de ampla defesa em benefício de todo o sistema[1].
- Esta breve contextualização se justifica para dimensionar o severo estrago causado pela mutilação do Projeto de Lei número 4207/2001. Com efeitos que perduram até hoje, as modificações no projeto original no Congresso Nacional desnaturaram o desiderato original de pôr cobro à cultura judicial de admissibilidade prévia automática da imputação, enraizada a ponto de, até então, sequer reconhecer carga decisória no ato de recebimento da denúncia, como frequentemente se dizia no passado, sem maiores constrangimentos, em resposta a questionamentos defensivos em casos de manifesta inépcia ou de falta de justa causa[2].2
- Embora para alguns (ou muitos) possa parecer que o juízo prévio de admissibilidade da imputação seja algo trivial, merecedor de pouca importância, como se a autoridade do acusador por si só bastasse para justificar o prosseguimento da ação penal, para a esmagadora maioria das pessoas a inclusão no polo passivo de uma relação processual penal representa um divisor de águas na vida, causando profundo e singular sofrimento, diuturnamente consumindo forças e tornando amarga a própria existência. Após alguns anos de dedicação às lides forenses criminais, todo advogado se deparará seguramente com um cliente que sucumbe à doença e/ou ao desespero, diante de uma acusação manifestadamente inepta ou desprovida de justa causa, que coloca em xeque a sua reputação e dignidade perante a sociedade. Até mesmo porque, ao final, eventual absolvição será encarada perante terceiros não como consequência da inépcia ou falta de justa causa desde o início alardeada pela Defesa, mas sim como reflexo de uma brecha na lei identificada por um advogado contratado a peso de ouro, conforme difundido no imaginário coletivo.
- Daí a plena pertinência da proposição legislativa ora em análise, à vista do seu potencial de extração de máxima efetividade das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, resgatando o espírito do Projeto de Lei número 4.207/2001, elaborado pelo Ministério da Justiça em conjunto com a comissão de renomados juristas presidida pela saudosa Professora Ada Pelegrini Grinover.
- Nessa toada, é importante recordar que desequilíbrios sistêmicos graves têm se sucedido com frequência elevada na história recente do Brasil, justamente em virtude do acúmulo de equívocos que podem parecer pontuais, pouco expressivos, a exemplo da mera modificação do texto de um projeto de lei, mas que ocasionam danos de grandes proporções no futuro, traduzindo a falta de consciência que campeia entre nós em torno da dificuldade e da relevância da construção de um quadro de liberdades públicas sólido, destinado, sobretudo, a conter o florescimento de tentações autoritárias que invariavelmente surgem em momentos de crise.
- A proposição legislativa ora em análise, ademais, está em plena sintonia com o Projeto de Código de Processo Penal elaborado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, atualmente em trâmite no Congresso Nacional sob o número 7.987/2010, que sobre o tema, dispõe o seguinte, de forma bem mais completa e com qualidade técnica superior, aliás:
“Art. 251. Oferecida a denúncia, se não for o caso de seu indeferimento liminar, o juiz notificará a vítima para, no prazo de 10 (dez) dias, promover a adesão civil da imputação penal.
Art. 252. Com ou sem a adesão civil, o juiz mandará citar o acusado para oferecer resposta escrita no prazo de 10 (dez) dias.
- § 1° O mandado de citação deverá conter cópia integral da denúncia e demais documentos que a acompanhem.
- § 2° Se desconhecido o paradeiro do acusado, ou se ele criar dificuldades para o cumprimento da diligência, proceder-se-á à sua citação por edital, contendo o teor resumido da acusação, para fins de comparecimento à sede do juízo.
- § 3° Comparecendo o acusado citado por edital, terá vista dos autos pelo prazo de 10 (dez) dias, a fim de apresentar a resposta escrita.
- § 4° Em qualquer caso, citado o acusado e não apresentada a resposta no prazo legal, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.
Art. 253. Na resposta escrita, o acusado poderá arguir tudo o que interessar à sua defesa, no âmbito penal e civil, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas até o máximo de 8 (oito), qualificando-as, sempre que possível.
Parágrafo único. As exceções serão processadas em apartado, nos termos do art. 408 e seguintes.
Art. 254. Estando presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, o juiz receberá a acusação e, não sendo o caso de absolvição sumária ou de extinção da punibilidade, designará dia e hora para a instrução ou seu início em audiência, determinando a intimação do órgão do Ministério Público, do defensor ou procurador e das testemunhas que deverão ser ouvidas.
Parágrafo único. O acusado preso será requisitado para comparecer à audiência e demais atos processuais, devendo o poder público providenciar sua apresentação, ressalvado o disposto no art. 70, § 1 º.
Art. 255. Caberá absolvição sumária, desde logo, quando o juiz, prescindindo da fase de instrução:
- – comprovar a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;
- – comprovar a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade, salvo quando cabível a imposição de medida de segurança;
- – reconhecer a manifesta atipicidade do fato, nos termos e nos limites em que narrado na denúncia”
- Por todo o exposto, opinamos pela aprovação do projeto de lei mencionado em epígrafe, com sugestão para que o seu conteúdo seja integralmente substituído pelos artigos de lei correlatos constantes do projeto de reforma do Código Processo Penal elaborado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, acima transcritos, tendo em vista a superior qualidade técnica e maior nível de detalhamento destes.
- Se porventura aprovado pela Comissão Permanente de Direito Penal, e em seguida, pelo Plenário da Casa de Montezuma, sugere-se, desde já, seja o presente parecer encaminhado ao eminente douto Parlamentar relator do projeto de Lei número 8.045/2010, do Senado Federal, que trata de reforma integral do Código de Processo Penal.
Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2017.
Ricardo Pieri Nunes
Membro da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB
[1] STJ, RHC 59.870, Rel. min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 6.10.2016, unânime:
“Do exame dos autos, constata-se que, na espécie, em resposta à acusação, a defesa arguiu (fls. 41/82): a inépcia da denúncia, inclusive sob a alegação de que genérica; a ausência de demonstração do liame subjetivo para a consecução do resultado; a falta de justa causa; nulidade decorrente da violação à independência funcional do Ministério Público; e atipiciade de conduta (…) Nota-se, assim, que o Juízo da 1a. instância, ao proferir a decisão nem sequer mencionou os pontos suscitados na peça defensiva de resposta à acusação.
Frise-se que esta Corte vem entendendo que a decisão que rejeita a absolvição sumária deve ser fundamentada, ainda que de forma concisa, apreciando, quando apresentadas na resposta à acusação, teses relevantes e urgentes, e, se não for o caso, ao menos referindo os pontos aventados pela defesa para, então fundamentar a necessidade de dilação probatória na análise.
Deste modo, deve o processo ser anulado, a partir da decisão denegatória da absolvição sumária, para que sejam enfrentadas as teses da defesa relevantes e urgentes, consignando, em caso de ausência para aquelas dependentes de instrução, essa condição.
Ante o exposto, voto por dar parcial provimento ao reclamo para anular a ação penal, a partir da decisão denegatória da absolvição sumária, devendo outra ser proferida, apreciando-se os termos da resposta à acusação”.
[2] STJ, RHC 5634, Rel. Min. Vicente Leal, Sexta Turma, julgado em 20.10.1997, unânime:
“O DESPACHO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA TEM A NATUREZA DE
DECISÃO INTERLOCUTORIA SIMPLES, SEM QUALQUER CARGA DECISÓRIA, NÃO GERANDO PRECLUSÃO QUANTO A REGULARIDADE DA PEÇA EXORDIAL ACUSATÓRIA.
NA SISTEMÁTICA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, EXIGE-SE FUNDAMENTAÇÃO PARA O DESPACHO DE REJEIÇÃO DA DENÚNCIA OU QUEIXA (ART. 516). SILENCIANDO A LEI NO TOCANTE AO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, QUE NÃO DEVE CONTER INCURSÕES SOBRE O TEOR DA
ACUSAÇÃO PARA EVITAR A EMISSÃO DE JUIZO PRÉVIO DE CONDENAÇÃO.”