Medidas para alteração da competência para facilitar o julgamento de crimes complexos com reflexos eleitorais

Publicado em Lei Anti-Crime? Estudo do IAB sobre os Projetos de Lei 39/2019, 881/2019 e 882/2019. Márcio Barandier (organizador). Tirant lo Blanch, São Paulo, 2019.

Ricardo Pieri

Medidas para alteração da competência para facilitar o julgamento de crimes complexos com reflexos eleitorais

Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão Permanente de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros, Dr. Márcio Barandier 

 

PARECER 

  

Projeto de Lei que busca reduzir o alcance da competência da Justiça Eleitoral em matéria penal. 

 

Caráter vago da exposição de motivos da proposta. Ausência de indicação de dados concretos com aptidão para justificar a sua pertinência. 

 

Parecer pela rejeição do projeto de lei. 

 

  1. Versa o presente parecer sobre a Indicação número 01/2019, de autoria do Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão Permanente de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros, voltada ao denominado pacote de lei anti-crime, recentemente elaborado pelo Ministério da Justiça e encaminhado ao Congresso Nacional, contendo uma série de propostas de reformas da legislação penal e processual penal em vigor.

 

  1. Em um primeiro momento, o referido pacote foi apresentado ao público pelo Ministério da Justiça em formato único, com a íntegra das propostas, dentre as quais a intitulada “medidas para alteração da competência para facilitar o julgamento de crimes complexos com reflexos eleitorais”, indicandose a edição de lei ordinária como a via a adequada para implementá-la.

 

  1. Logo em seguida, o eminente Ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, veio a público para criticar especificamente este ponto da proposta, ao correto argumento de que a modificação alvitrada demandaria a edição de lei complementar.

 

  1. Poucos dias depois, o Ministério da Justiça resolveu encaminhar o referido pacote ao Congresso Nacional, dividido em três projetos de lei distintos, um dos quais versando especificamente sobre o tema sub examen, agora com a indicação da necessidade da edição de lei complementar para a implementação da alteração normativa, tal como apontado pelo eminente Ministro Celso de Mello.

 

  1. Tombado sob o número 38/2019, o projeto de lei complementar em exame pretende acrescentar um novo inciso ao artigo 79 do Código de Processo Penal e modificar os artigos 35, inciso II e 364 do Código Eleitoral, abaixo transcritos, para fins comparativos, em suas atuais redações e na forma pretendida pelo Ministério da Justiça:

 

  1. O principal ponto da proposta consiste em modificar a regra que determina o processamento e julgamento conjunto, perante a Justiça

Eleitoral, de infrações penais eleitorais e de infrações penais comuns conexas. Pretende o Ministério da Justiça que, ao invés do processamento e julgamento conjunto dos dois tipos de delitos, ocorra o fracionamento da persecução, para que parte seja alvo de apuração perante a Justiça Eleitoral, e parte perante a Justiça Comum (estadual ou federal).

 

  1. A exposição de motivos da modificação pretendida está baseada nos seguintes argumentos:

 

O art. 35, inc. II, na atual redação da lei eleitoral, atribui à Justiça especializada o processo e julgamento dos crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos. O que se quer com este Projeto de Lei Complementar é simplesmente retirar a palavra ‘comuns’. Isto porque esta regra de competência não vem se mostrando conveniente, pois dá à jurisdição especializada atribuições que não lhe dizem respeito. Pela mesma razão, impõe-se a alteração no art. 79, inc. III, do Código de Processo Penal.

  • experiência com processos oriundos de grandes operações deixou claro que, não raramente, os crimes conexos são de elevada complexidade, incluindo, por exemplo, lavagem transnacional de valores elevados. A Justiça Eleitoral, reconhecidamente célere nos seus julgamentos, não está bem estruturada para processar e julgar esses casos, cuja discussão jurídica lhe é totalmente estranha. Ela é eficiente e respeitada, exatamente por ser especializada. A exclusão dos crimes comuns conexos restituir-lhe-á sua função original e permitirá que o Juízo Criminal comum, federal ou estadual, processe e julgue ações para as quais está preparado.

 

  1. Assim, a proposta legislativa parte da premissa de que determinada discussão jurídica de Direito Penal e Processual Penal seria totalmente estranha aos magistrados da Justiça Eleitoral.

 

  1. Ora, não há tema de Direito Penal e Processual Penal totalmente estranho para juízes togados, sabatinados em dificílimos concursos públicos, após comprovarem profundo domínio daquelas disciplinas, de modo a lhes credenciar para o exercício pleno da jurisdição, sem restrições por matéria.

 

  1. O cotidiano forense, aliás, tem sido pródigo em revelar a atuação desassombrada de jovens magistrados em casos penais complexos e de repercussão midiática, com reiteradas demonstrações de amplo conhecimento e domínio técnico das matérias tratadas, a despeito da reduzida experiência prática de que ainda dispõem. E isto ocorre precisamente porque estes juízes foram submetidos ao duro crivo dos concursos de ingresso na Magistratura, que lhes conferiu habilitação para atuar a concreta da vontade na lei em sua plenitude, em diferentes searas.

 

  1. O que ora se afirma se mostra tanto mais verdadeiro quando se observa que o projeto não pretende extinguir a competência penal dos magistrados eleitorais, mas apenas reduzir o seu alcance, porque, no entendimento do Ministério da Justiça, determinada discussão jurídica, inerente ao Direito Penal e Processual Penal, seria totalmente estranha para juízes que já exercem a jurisdição em tais searas.

 

  1. A incoerência, como se percebe, salta à vista.

 

  1. Na realidade, afirmar que um tema de Direito Penal e Processual Penal é totalmente estranho para magistrados togados que já exercem e continuarão a exercer a jurisdição penal (pois o Ministério da Justiça não pretende extingui-la) chega a ser até arrogante e ofensivo, concessa maxima venia, por tratar profissionais com alto nível de qualificação técnica e indiscutível preparo intelectual como neófitos, sem condições de enfrentar o desafio de um caso difícil em virtude da sua complexidade, como se a dificuldade e a complexidade não fizessem parte do exercício da jurisdição como matéria prima essencial.

 

  1. Mas afinal, qual seriam as grandes discussões jurídicas de Direito Penal e Processual Penal que os magistrados eleitorais não teriam condições de enfrentar?

 

  1. Ao descrever as situações indicativas do alegado total estranhamento para juízes eleitorais, a justificativa do projeto de lei faz referência genérica a crimes de elevada complexidade, exemplificando objetivamente apenas com casos de lavagem transnacional de valores elevados, além de fazer referência ao “combate à corrupção e a efetividade do sistema de Justiça”. De acordo com o Ministério da Justiça, a regra vigente “não vem se mostrando conveniente, pois dá à jurisdição especializada atribuições que não lhe dizem respeito”.

 

  1. Sem maiores dificuldades, percebe-se o caráter extremamente vago e desemparado de qualquer evidência empírica para dar concretude ao discurso da justificativa do projeto de lei.

 

  1. Qual seria o universo de casos penais de elevada complexidade, que tem aportado na Justiça Eleitoral e demonstrado a sua falta de preparo para processá-los e julga-los? Estaríamos falando de 1 caso de elevada complexidade para cada 10? Ou do dobro deste montante? Ou quem sabe a metade?

 

  1. A modificação de uma tradicional norma de competência, há décadas em vigor, não pode se dar desta maneira, data venia, sem um estudo prévio acerca da sua necessidade e pertinência, apenas porque um determinado Ministro da Justiça, por mais respeitável que seja, possui o entendimento de que a regra vigente “não vem se mostrando conveniente, pois dá à jurisdição especializada atribuições que não lhe dizem respeito”. O norte primeiro da atividade legiferante, como não se desconhece, reside no princípio da idoneidade, que impõe a prévia realização de investigações empíricas em torno da utilidade e eficácia da incriminação para atingir os objetivos primordiais a que se propõe.[1]

 

  1. O Ministério da Justiça admite na sua justificativa que a Justiça Eleitoral é “reconhecidamente célere nos seus julgamentos”, mas ao mesmo tempo sustenta que “neste projeto o foco é, especificamente, o combate à corrupção e a efetividade do sistema de Justiça”. Ora, não se alcança efetividade no sistema de Justiça sem celeridade. E se a Justiça Eleitoral já é “reconhecidamente célere”, afigura-se contraditório, data venia, dizer que não teria condições de julgar com efetividade casos de corrupção.

 

  1. Até mesmo porque o tipo penal de corrupção não é sinônimo de novidade ou de uma tendência mais moderna do Direito Penal, a demandar atualização acadêmica por juízes togados. Trata-se, ao revés, de assunto bastante conhecido pela doutrina e jurisprudência, integrante de qualquer manual básico da disciplina e da grade curricular dos primeiros anos da Faculdade de Direito, notadamente desprovido de qualquer complexidade acentuada que justifique o tratamento diferenciado desejado pelo Ministério da Justiça.

 

  1. O Ministério da Justiça deixa transparecer em sua proposta que a Justiça Eleitoral deve ser tratada como uma espécie de juizado de pequenas causas, por suposta falta de aptidão para o processamento de casos penais de corrupção mais complexos, atribuindo uma espécie de capitis deminutio aos servidores públicos que a integram.

 

  1. Na realidade, a justificativa do projeto de lei sub examen omite parte da motivação – quiçá a principal – que tem impulsionado alguns setores na comunidade jurídica a pugnar pela modificação pretendida, plasmada no sentimento, capitaneado pelo Ministério Público, de repulsa à presença da Advocacia da composição dos Tribunais Regionais Eleitorais.

 

  1. Com efeito, a Procuradoria-Geral da República tem buscado implementar pela via da hermenêutica o mesmo resultado prático que o Ministério da Justiça deseja concretizar por meio do devido processo legislativo, requerendo, para tanto, em diferentes casos concretos em curso no Supremo Tribunal Federal, o fracionamento de competência entre a Justiça Eleitoral e a Justiça comum disciplinado no projeto de lei ora em análise.

 

  1. Confira-se, em abono do que ora se afirma, o discurso da Chefia do Ministério Público Federal às fls. 330/341 da Petição número 6.694, cujos autos de encontram disponíveis para consulta no sistema de processo eletrônico do Pretório Excelso:

Dessa forma, uma eventual conexão entre crimes comuns de natureza federal e crimes eleitorais não se resolve subtraindo-se da Justiça Federal a sua parcela de competência prevista na Constituição, atribuindo-a, em seguida, à Justiça Eleitoral, em atenção ao que preveem os artigos 35, inc. II do Código Eleitoral e 78, inc. IV do CPP. Isso equivaleria a fazer prevalecer as regras de competência e de sua modificação previstas na legislação ordinária em detrimento do que estipula a Constituição, o que, por óbvio, não pode ser admitido.

  • solução que se dá a situações de eventual conexão entre crimes comuns de natu- reza federal e crimes eleitorais, portanto, não pode passar pela aplicação pura e simples da já referida legislação ordinária. Diversamente, tal solução está, segundo aqui se entende, em considerar cada Justiça – a Federal e a Eleitoral – como a competente para processar os crimes cujo julgamento, pela Constituição (no caso da Justiça Federal) e pela Lei (no caso da Justiça Eleitoral), lhes cabem.

A consequência direta disso é que, havendo conexão entre crimes comuns de natu- reza federal e crimes eleitorais, a respectiva investigação ou ação penal será cindida, sendo os primeiros julgados pela Justiça Federal e os segundos pela Justiça Eleitoral. Com isso, evita- se que a Constituição Federal seja afrontada e, ao mesmo tempo, prestigia-se a especialização da Justiça Eleitoral para cuidar de crimes estritamente eleitorais.

          (…)

Considerando que os TREs e o TSE possuem competência recursal plena em matéria criminal, isso significa que, caso se entenda que a competência penal da Justiça Eleitoral abrange crimes comuns federais, ter-se-á um cenário em que advogados, e não juízes, serão os responsáveis por processar e julgar esses crimes.

Ora, embora não se duvide da competência técnica e, muito menos, da higidez moral dos advogados que integram os TREs e o TSE, é fato que eles exercem seu oficio judicante mediante designação precária e transitória, sem proibição de continuarem exercendo a advocacia, além de outras atividades vedadas

à magistratura. Sobre eles não incidem as mesmas garantias e os mesmos deveres constitucionais que circundam a atuação dos

juízes togados, tais como a independência (formal e, principalmente, material), a inamovibilidade e a im- parcialidade (não apenas pressuposta, mas, também, ostensiva). Ocorre que é justamente esse plexo de garantias e deveres que confere legitimidade à jurisdição penal (a qual incide, como se sabe, sobre a liberdade e a propriedade das pessoas), permitindo o seu exercício de modo válido e pleno.

Assim, além de todos os óbices práticos à competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes federais comuns acima indicados, há, ainda, que se questionar se seria conveniente, desejável, e, até mesmo, compatível com a Constituição, permitir-se que advogados em pleno exercício da advocacia possam emitir juízos decisórios em sede de investigações ou ações penais que tratem desse tipo de crime. Trata-se de reflexão, repita-se, que não pode deixar de ser feita, ao ver deste Parquet Federal.”

 

  1. Idêntico discurso consta do denominado pacote de 70 medidas de combate à corrupção, elaborado no ano de 2018 pela Fundação Getúlio Vargas e pela Transparência Internacional, com a declarada colaboração de diversos Procuradores da República que coordenam e integram as chamadas forças tarefas da operação lava jato. Suas Excelências, neste trabalho, pretendiam ir até além do projeto de lei em exame, sugerindo a “extinção da competência criminal da Justiça Eleitoral”, a ser implementada a partir de emenda constitucional, com a modificação do artigo 109, inciso IV da Constituição Federal, além do artigo 35, inciso II do Código Eleitoral.[2]

 

  1. De acordo com a justificativa constante do pacote de 70 medidas de combate à corrupção, “embora a Constituição preveja a participação de advogados não togados na composição desses órgãos, a jurisdição criminal exige a plenitude das garantias e deveres da magistratura, ausentes, na essência, para  osjuízes-advogados”.

 

  1. Em outras palavras: o Ministério Público não deseja que determinados casos da sua predileção sejam submetidos ao crivo revisional dos Tribunais Regionais Eleitorais, por não gostar da estrutura de tais órgãos, especialmente pela presença de advogados em suas composições.

 

  1. É realmente muito difícil crer que o Ministério da Justiça, ao formular e encaminhar o projeto de lei em exame ao Congresso Nacional, estivesse completamente alheio a este lamentável sentimento de repulsa à estrutura dos Tribunais Regionais Eleitorais, mormente porque diversos integrantes da cognominada força tarefa da operação lava jato de Curitiba, com quem o Excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça atuou por anos, subscrevem o referido pacote de 70 medidas de combate à corrupção.

 

  1. Deve ser repelida com máxima energia a assertiva de que os advogados que integram a Justiça Eleitoral não estariam sujeitos às mesmas garantias e os mesmos deveres constitucionais que circundam a atuação dos juízes togados. Especificamente qual dever constitucional, estabelecido para o juiz togado, poderia ser desprezado pelo advogado no exercício do poder jurisdicional? E se desempenham seu ofício com o amparo de um mandato, por que não poderiam fazê-lo com independência? Preenchendo somente 2 de 7 assentos da estrutura dos Tribunais Regionais Eleitorais, por que a presença de advogados na segunda instância da Justiça Eleitoral incomoda tanto o Ministério Público?

 

  1. Olvida o Ministério da Justiça que a Justiça Eleitoral contribuiu e ainda tem contribuído decisivamente para a consolidação do maior período de estabilidade democrática da história da República, justamente por conta da sua atuação constante, célere, firme e independente, não apenas em casos simples desimportantes, mas também em processos de alta complexidade e destaque no cenário nacional, inclusive em matéria criminal. A crítica generalizada, deselegante e infundada do Ministério Público à sua estrutura, colocando sob suspeita indistintamente a sua forma de julgar casos penais, merece o severo repúdio do Instituto dos Advogados Brasileiros.

 

  1. Por tais razões, opinamos pela rejeição do projeto de Lei Complementar número 38/2019, desde já sugerindo, se porventura o nosso entendimento for acolhido pela Comissão Permanente de Direito Penal e pelo Plenário do Instituto dos Advogados Brasileiros, o encaminhamento do presente parecer ao Excelentíssimo Senhor Presidente do Congresso Nacional, para que seja apreciado nos debates legislativos em torno da matéria.

 

 

Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 2019.

Ricardo Pieri Nunes 

Membro e Vice-Presidente da Comissão Permanente de Direito

Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros

[1] TAVARES, Juarez, Critérios de Seleção de Crimes e Cominação de Penas, in Revista dos Tribunais, Número Especial de Lançamento, 1992, São Paulo, p. 82/83.

[2] Medida de número 16 do referido pacote, que se encontra disponível na internet para consulta.

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