26 maio Projeto das 10 medidas de combate à corrupção do Ministério Público
PARECER DA COMISSÃO DE PROCESSO PENAL DA OAB/RJ
PROPOSTA DE VALIDAÇÃO DE NULIDADES
- Com indesejável frequência, o ser humano tenta atribuir a responsabilidade por seus erros a fatores externos, que pretensamente não lhe dizem respeito, sobretudo quando o equívoco ganha publicidade, evidenciando aspectos não virtuosos do seu autor, a exemplo da propensão ao abuso, a debilidade técnica ou a negligência profissional.
- Não é com facilidade que o ser humano admite francamente vícios desta natureza. Costuma aflorar, em situações com este perfil, o pensamento de que o problema não está em si mesmo, mas em algo alheio, injusto, que merece ser modificado.
- A inusitada e quase inacreditável proposta de validação de nulidades veiculada no projeto das 10 medidas de combate à corrupção não poderia ilustrar melhor esta realidade.
- Pois dela se extrai uma inescondível nota de inconformismo com o resultado de determinados julgamentos pelos tribunais brasileiros, que geraram a anulação de processos criminais, em decorrência de irregularidades cometidas pelo próprio Ministério Público, fruto de atos diretamente realizados por seus membros, de omissões no controle externo da atividade policial ou da aceitação de decisões judiciais ilegais, contra as quais optou por não se insurgir oportunamente.
- Neste contexto, através de uma descomunal e bem pensada campanha de marketing, o Ministério Púbico empreende esforços de comunicação para se distanciar do problema e responsabilizar o sistema, que pretende ver reformado, para transformar afrontas ao devido processo legal em filigranas sem maior importância, passíveis de irrestrita anistia, em uma espécie de prenuncio de que os abusos continuarão a ser perpetrados, mas agora sob o cômodo conforto de um salvo conduto prévio.
- Nunca é demais lembrar que o surgimento do devido processo legal, como conquista do mundo civilizado, não se deu porque os detentores do poder antes o exerciam com sabedoria e equidade, distribuindo a cada um o que é seu, de modo a proporcionar justiça e bem estar para todos. Bem ao contrário, a idealização de um modelo de regras para a busca da verdade no campo processual penal, que hoje conta com uma bilionária estrutura encarregada da sua implementação, resulta precisamente dos sistemáticos abusos que o estado sempre cometeu contra o indivíduo, e ainda continua a perpetrar em larga escala.
- Daí a necessidade da existência de um regime de nulidades sólido no ordenamento jurídico, para reprimir os desvios que os detentores de parcela da soberania estatal historicamente tendem a cometer no desempenho da atividade de persecução criminal, quando se deparam com a possibilidade de privar o homem daquilo que lhe é mais caro: a liberdade.
- Não é verdadeira, em absoluto, a afirmação dos autores do projeto de que o sistema atual é “disfuncional, possui caráter extremamente subjetivo, que traduz em insegurança jurídica, conduz a decisões seletivas, transforma o processo em uma autêntica loteria e resulta em impunidade”.
- Ora, o que há de subjetivo e disfuncional na previsão do artigo 157 do Código de Processo Penal (CPP) de que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”? A regra é clara e objetiva como a luz solar: se a produção da prova contrariar a Lei ou a Constituição, será tida como ilícita.
- O Ministério Público, porém, entende que, a depender do tipo de afronta à Lei ou à Constituição Federal, a prova deve ser aceita, propondo que a sua anulação só ocorra quando for obtida em descompasso com “direitos e garantias constitucionais ou legais”, e admitida quando houver violação a “normas constitucionais ou legais”, ao argumento de que o conceito atualmente em vigente no CPP “é por demais amplo e permite a anulação de provas (o sepultamento de grandes operações policiais de combate ao crime ou de complexas ações penais em fases avançadas ou até mesmo já julgadas) por inobservância de uma simples formalidade, por menor importância que tenha, mesmo que isso não implique violação de direito ou garantia do investigado.”
- Sem maiores constrangimentos, portanto, reafirma o Ministério Público o seu intento de continuar a produzir provas que levarão ao encarceramento de pessoas sem respeitar as normas constitucionais e legais que disciplinam a matéria, especialmente em “grandes operações policiais”, desejando apenas não mais arcar com as consequências das suas ações, como se isto fosse algo positivo para o mundo civilizado.
- Por óbvio, não existe simples formalidade sem importância quando se trata da produção de provas que podem levar pessoas ao cárcere. A própria afirmação nestes termos do Ministério Público é o quanto basta para confirmar o próprio sentido da norma, que aí está, tal como posta hoje, precisamente para servir de freio ao ímpeto, recorrente entre os detentores do poder, de atentar contra a liberdade do indivíduo antes da confirmação da sua culpa no processo penal. Não há como se exigir o cumprimento da lei descumprindo-a, a partir da opinião pessoal de um ou outro membro Ministério Público – e são milhares – de que está diante de uma simples formalidade sem importância, que pode ser ignorada de acordo com o seu critério ou humor.
- É preciso ler e reler mais de uma vez os dez incisos do parágrafo segundo que o projeto de lei pretende acrescentar ao artigo 157 do CPP, para acreditar que tais propostas legislativas foram realmente formuladas e, o que é pior, levadas ao Congresso Nacional.
- As duas primeiras hipóteses de validação de provas ilícitas, descritas nos incisos I e II, revelam-se absolutamente redundantes e desnecessárias, porquanto já previstas no artigo 157 do CPP em sua atual feição. O ordenamento em vigor já prevê a regra da aceitação da prova que não guarda nexo de causalidade com a prova ilícita, ou que foi obtida de fonte independente da origem espúria. A ideia de acrescentar na lei algo nela já previsto, naturalmente, não faz qualquer sentido.
- Os aspectos realmente chocantes da proposta do Ministério Público começam no inciso III, com vista à validação de provas ilícitas quando “o agente público houver obtido a prova de boa-fé ou por erro escusável, assim entendida a existência ou inexistência de circunstância ou fato que o levou a crer que a diligência estava legalmente amparada”.
- Ora, Delegados de Polícia, Promotores de Justiça, Procuradores da República e Juízes sempre sabem exatamente o que estão fazendo no desempenho das suas funções. São profissionais altamente qualificados, preparados do ponto de vista intelectual, submetidos ao duro crivo de um concurso público dificílimo, e não crianças inocentes de tenra idade que ingenuamente podem ser levadas a crer que o lícito, na realidade, é espúrio. Todos têm plena consciência dos seus atos e deveres, além de conhecerem profundamente o Direito Penal e Processual Penal.
- No ponto, impressiona o timbre de condescendência que caracteriza o exemplo dado pelo Ministério Público na justificativa do projeto de lei, importado do sistema norte-americano, consistente no seguinte precedente judicial:
“A exceção de boa-fé (good faith exception): em Arizona vs. Evans, 514 U.S.1 (1995), Davis vs. U.S. 131 S.Ct. 2419 (2011) e Herring vs. U.S., 555 U.S. 135 (2009), a SCOTUS decidiu que não se deve excluir a prova quando o policial a tiver obtido de boa-fé ou por erro escusável, assim entendida a existência ou inexistência de circunstância ou fato que o levou a crer que a diligência estava legalmente amparada, como, por exemplo, quando o mandado contiver dados incorretos ou vier a ser posteriormente anulado.
Entendeu-se que, nessas circunstâncias, a exclusão da prova não produziria o efeito dissuasório desejado, de evitar que os policiais, no futuro, voltassem a violar direitos constitucionais dos investigados.”
- Diferentemente do que pensa o Ministério Público, a única maneira de dissuadir o servidor público da eventual tentação de não cumprir o seu mister com zelo e respeito à Lei – para que confeccione corretamente um mandado que permitirá a invasão de um domicílio, por exemplo –, é prever que os seus equívocos, abusos ou lapsos resultem em consequencias sérias e efetivas. Apenas fazer vista grossa, anistiando a irregularidade, como pretende o Ministério Público, despontaria como verdadeiro incentivo ao abuso, à negligência e à ineficiência, contrariando princípios elementares que regem a Administração Pública.
- O que ora se afirma ganha especial relevo em um país como o Brasil, marcado por uma rotina perene de desrespeito aos mais elementares direitos fundamentais, que como regra atinge investigados e réus menos favorecidos, expostos diariamente ao mau uso do arbítrio sem qualquer tipo de assistência jurídica efetiva. Confissões forçadas sem a advertência do direito ao silêncio, invasões de domicílio à falta de ordem judicial e o acesso a dados sigilosos de forma clandestina, por exemplo, infelizmente, ainda fazem parte do cotidiano do sistema de persecução criminal.
- Por óbvio, tais problemas não serão eliminados ou ao menos atenuados com a criação de brechas na lei para anistia-los, mas sim com o reforço da legislação com o objetivo de contê-los.
- Não podemos perder de vista que o processo penal não é regido pelas boas intenções dos que nele atuam, mas sim por regras objetivas. O que realmente importa, nesta seara, é a estrita observância das balizas impostas pelo legislador às investidas do Estado em face do indivíduo. As nuances psíquicas dos operadores do Direito Penal, suas boas ou más intenções, até mesmo por não serem passíveis de conferência, não tem qualquer relevância para fins de avaliação da legalidade dos atos praticados no curso do processo criminal.
- Aliás, existe um dito popular conhecido a respeito de um local bastante desagradável que se encontra repleto de boas intenções…
- O projeto de lei pretende também branquear a ilicitude da prova quando “a relação de causalidade entre a ilicitude e a prova dela derivada for remota ou tiver sido atenuada ou purgada por ato posterior à violação” (inciso IV). De acordo com o Ministério Público, “quando houver decorrido muito tempo entre a violação da garantia e a obtenção da prova, tornando remota a relação de dependência ou consequência, ou quando fato posterior a houver descontaminado ou atenuado essa relação, como, por exemplo, quando o investigado resolver se tornar colaborador”.
- Em outras palavras, se já passou “muito tempo”, o ato ilegal deveria ser perdoado. Na visão do Ministério Público, o decurso do tempo, sequer determinado no projeto de lei – 1 mês, 1 ano, 5 anos? –, teria o condão de “descontaminar” a ferida no ordenamento jurídico, especialmente “quando o investigado resolver se tornar colaborador”.
- O que se quer, portanto, é esquentar a prova ilícita.
- O primeiro obstáculo à proposta consiste no caráter extremamente impreciso dos critérios que permitiriam a sugerida descontaminação. Em que consistiria, afinal, a atenuação ou a purgação da ilicitude da prova, ventiladas na proposta ministerial? Seria conveniente deixar ao arbítrio de milhares de Delegados de Polícia, membros do Ministério Público e Juízes dos quatro cantos do Brasil a livre definição do que seria atenuação ou purgação da ilicitude da prova?
- Se uma prova é obtida mediante tortura, através de monitoramento telefônico clandestino ou por meio da violação de sigilo bancário sem autorização judicial prévia, a passagem do tempo jamais terá o condão de branqueá-la. Em qualquer Estado que pretenda se credenciar como Democrático e de Direito, a produção da prova em tais condições, ao arrepio das regras do jogo, gera nulidade absoluta, passível de cognição a qualquer tempo, inclusive após o trânsito em julgado da condenação.
- De toda sorte, não deixa de ser sugestiva a proposta de validação de provas ilícitas “quando o investigado resolver se tornar colaborador”. É notório que os acordos de delação premiada recentemente articulados pelo Ministério Público Federal invariavelmente contém cláusula estabelecendo que “a defesa desistirá de todos os Habeas Corpus
impetrados no prazo de 48 horas, desistindo também do exercício de defesas processuais, inclusive de discussões sobre competência e nulidades”. Por que o delator tem de se calar com tamanha pressa em relação a possíveis nulidades cometidas no curso da investigação? Dentre as provas levadas ao seu conhecimento, e que serviram de base para a tomada da sua decisão de delatar, haveria algo a ser escondido, que deva permanecer por todo o sempre à margem do controle do contraditório?
- É difícil não ter a impressão de que o Ministério Público está advogando em causa própria ao propor a legalização de provas ilícitas “quando o investigado resolver se tornar colaborador”, a fim de sepultar em definitivo irregularidades das quais tem conhecimento, ocorridas previamente à delação. Mas o que importa, seja este ou não o caso, é que a confissão forçada, induzida ou sugerida após a obtenção de uma prova ilícita sempre conduzirá ao reconhecimento de nulidade absoluta no processo penal, não podendo ser atenuada ou purgada em hipótese alguma.
- O Ministério Público deseja ainda incorporar ao ordenamento jurídico a possibilidade de validar a prova ilícita “derivada de decisão judicial posteriormente anulada, salvo se a nulidade decorrer de evidente abuso de poder, flagrante ilegalidade ou má-fé” (inciso V). Não bastasse a marcante subjetividade destes critérios, o que por si só já justifica o descarte da proposta, devemos lembrar que o Ministério Público atua no processo penal também como fiscal da lei (custos legis), cabendo-lhe zelar pela legalidade das decisões judiciais proferidas no curso da persecução penal.
- O problema é que, na prática, se a sua conveniência de momento é atendida pelo julgador, o Ministério Público costuma se dar por satisfeito e deixa de questionar a decisão proferida, mesmo que não preencha os parâmetros de legalidade sabidamente exigidos para a situação. Isto só ocorre a partir do momento em que o caso é submetido ao crivo das instâncias de controle do Poder Judiciário por provocação da Defesa, rendendo ensejo à anulação da prova.
- Uma simples consulta ao sítio de internet dos Tribunais Superiores revela sem maiores dificuldades a existência de um conjunto de casos – pouco representativo, diga-se de passagem – em que provas foram anuladas por conta da insistência do Ministério Público em prosseguir ou não se insurgir, como lhe cabia, contra a realização de investigações criminais em contexto manifestamente contrário à Lei e a Constituição.
- São casos em que, verbi gratia, investigações foram anuladas porque o Ministério Público deliberadamente optou por investigar autoridades dotadas de foro por prerrogativa de função, mesmo não possuindo atribuição para tanto, ou tolerou que assim se procedesse. Ou então em que provas foram anuladas porque o Ministério Público decidiu investigar supostos crimes contra a ordem tributária, mesmo sabendo que não havia lançamento definitivo de crédito tributário, em descompassado com a Súmula Vinculante número 24 do STF, ou tolerou que assim se procedesse. Ou, ainda, em que o Ministério Público solicitou o deferimento de medidas cautelares, a exemplo da interceptação telefônica, como providências inaugurais de investigação, baseadas apenas em denúncias anônimas, ou tolerou que assim se procedesse.
- Os exemplos de descumprimento intencional da Lei, ou em que foi nitidamente assumido o risco da posterior anulação do ato, são variados e guardam entre si uma característica comum: a recusa do Ministério Público em admitir a própria falha, substituída pela tentativa de transferir a responsabilidade pela nulidade a algum fator externo, estranho à sua atuação.
- Ao contrário do que quer fazer crer o Ministério Público, os casos em que processos criminais foram anulados em decorrência de vícios relacionados à produção da prova não possuem qualquer representatividade, que eventualmente pudesse legitimar a drástica mudança ora proposta, muito menos enquanto medida de pretenso combate à corrupção. Em sua exposição sobre o tema na Câmara dos Deputados, no dia 12 de setembro de 2016, o Professor Pós Doutor Ricardo Jacobsen Gloeckner apresentou números contundentes sobre o assunto, fruto de estudo sobre o julgamento de casos com este perfil pelo Supremo Tribunal Federal nos anos de 2014 e 2015, alcançando a seguinte constatação:
– 349 casos de nulidades examinados;
– 30 casos inaproveitáveis para a pesquisa, pois não houve julgamento de mérito;
– Dos 319 remanescentes, o STF reconheceu nulidade em 29 casos (9,36%);
– Destes 29 casos, 4 versavam sobre crimes contra a Administração Pública (1,29%).[1]
- Dada a pífia representatividade dos casos de corrupção em que nulidades na produção da prova foram reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal, logo se percebe que a proposta do Ministério Público, em boa verdade, como dito linhas acima, não passa de reflexo do inconformismo com derrotas pontuais que seus membros sofreram nos tribunais brasileiros, em alguns poucos casos versando sobre uma ou outra operação policial promovida com estrépito midiático, o mesmo estrépito que, após a anulação da prova, expôs o abuso que a originou ao escrutínio da opinião pública, revelando facetas pouco virtuosas de seus autores.
- Outra hipótese de validação de nulidades sugerida pelo Ministério Público diz respeito à prova “obtida em legítima defesa própria ou de terceiros ou no estrito cumprimento de dever legal exercidos com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência” (inciso VI). Ocorre que a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal consubstanciam causas de exclusão da ilicitude do crime, previstas no artigo 23 do Código Penal. São institutos de Direito Penal material, desprovidos do caráter instrumental típico dos institutos do Direito Processual Penal, a exemplo daqueles que disciplinam a produção da prova.
- Daí porque, do ponto de vista técnico, se afigura esdrúxula a cogitação de que uma causa de exclusão da ilicitude poderia gerar a produção de efeitos sobre a produção da prova, dada a óbvia ausência de comunicação jurídica entre tais institutos.
- Causa profunda espécie, de qualquer forma, constatar que o Ministério Público deseja aplicar causas de exclusão da ilicitude de crimes para validar provas ilícitas, o que permite entrever a sua propensão a tolerar ações abusivas no bojo na persecução penal, a depender do fim a que se destinem. Obter a confissão do investigado mediante tortura, para evitar a consumação de delitos, por exemplo, se encaixaria na definição de legítima defesa de terceiros com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência?
- De acordo com o Ministério Público, a prova ilícita deve também ser aceita quando “usada pela acusação com o propósito exclusivo de refutar álibi, fazer contraprova de fato inverídico deduzido pela defesa ou demonstrar a falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida, não podendo, contudo, servir para demonstrar culpa ou agravar a pena” (inciso VII). Destarte, caso não consiga fazer prevalecer a sua tese acusatória conforme as regras do jogo, rechaçando as alegações defensivas a partir do exercício regular das faculdades processuais de que dispõe, quer o Ministério Público a chance de obter contraprovas de qualquer forma, custe o que custar, mesmo que isto implique em vilipêndio à Lei e à Constituição.
- Ao mesmo tempo assustadora e pueril, a proposta revela absoluto desprezo pela noção elementar, óbvia em países democráticos, de que a verdade só pode ser alcançada no processo penal na forma dos tipos procedimentais de regência consagrados no ordenamento jurídico, e nunca à margem das suas balizas. Caso o Ministério Público não logre demostrar pelas regras do jogo que as alegações defensivas são improcedentes, restar-lhe-á tão somente aceitar o resultado, com a serena consciência de que este foi o resultado justo, porquanto obtido na forma da Lei da qual é fiscal e que jurou respeitar.
- No tocante à proposta de validação da prova ilícita sempre que “necessária para provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena” (inciso VIII), trata-se de noção há muito conhecida, aceita e aplicada pacificamente tanto pela doutrina como pela jurisprudência, já incorporada em definitivo à tradição jurídica brasileira, o que torna despicienda, a nosso ver, a reforma pontual da legislação para positivá-la.
- Segundo o Ministério Público, o cidadão comum deve também se envolver na produção de provas ilícitas, propondo a validação das mesmas quando “obtidas no exercício regular de direito próprio, com ou sem intervenção ou auxílio de agente público” (inciso IX), ou quando “obtida de boa-fé por quem dê notícia-crime de fato que teve conhecimento no exercício de profissão, atividade, mandato, função, cargo ou emprego públicos ou privados” (inciso X).
- No mundo civilizado, porém, o Estado não deve propiciar condições ao surgimento de justiceiros na sociedade, incentivando o cidadão comum a produzir provas ilícitas na apuração de crimes, como se isto fosse o exercício regular de um direito, muito menos com o auxílio de agentes públicos, a quem incumbe fazer exatamente o oposto, no sentido de orientar e coibir condutas atentatórias ao ordenamento jurídico no seio da sociedade.
- A partir do momento em que o Estado passa a chancelar a produção de provas ilícitas pelo cidadão comum, sempre que a seu critério juízo imagine se encontrar no exercício regular de um direito, estar-se CADA UM COM SEU PORRETE/EROS GRAU.
O cidadão comum, querendo, pode levar ao conhecimento das autoridades práticas criminosas das quais tenha tomado conhecimento – o que a doutrina denomina delatio criminis –
- “§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.
- 4o O juiz ou tribunal que declarar a ilicitude da prova indicará as que dela são derivadas, demonstrando expressa e individualizadamente a relação de dependência ou de consequência, e ordenará as providências necessárias para a sua retificação ou renovação, quando possível.
- 5o O agente público que dolosamente obtiver ou produzir prova ilícita e utilizá-la de má- fé em investigação ou processo, fora das hipóteses legais, sujeita-se a responsabilidade administrativa disciplinar, sem prejuízo do que dispuser a lei penal.”
- Em conclusão: aos inúmeros instrumentos invasivos e truculentos de que o Estado hoje dispõe para investir contra o indivíduo durante a persecução criminal, e não são poucos, a proposta de lavagem de provas, veiculada na proposta do Ministério Público, definitivamente não deve ser incorporada ao ordenamento jurídico.
- Somos, por tais razões, pela integral rejeição da proposta de reforma do artigo 157 do CPP ora em exame, que nenhum vínculo guarda com o combate à corrupção alardeado pelo Ministério Público em sua campanha de marketing, buscando, na realidade, que apenas tenta encobrir o real escopo de abolição do sistema de nulidades hoje vigente, idealizado na década de 40 a partir do Código de Processo Penal italiano de Mussolini, em ambiente de extrema hostilidade ao direito de defesa,
de alcance já extremamente idealizado com o único propósito de obter um salvo conduto para os seus próprios abusos e equívocos cometidos no passado, no presente e que, conforme já anuncia em público, continuarão a ocorrer no futuro.
[1] Disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/webcamara/arquivos/videoArquivo?codSessao=57751#videoTitulo. Acesso no dia 26 de setembro de 2016.